Nas últimas semanas, a indústria da música foi acometida por dois grandes escândalos envolvendo abusos sexuais.
O primeiro deles se refere a L.A Reid. O executivo é conhecido pelo grande público por ter feito parte da bancada de jurados do ‘The X Factor’. Também ganhou destaque pelos trabalhos na Arista, Epic e Island/Def Jam Records, onde desempenhou papéis de CEO, presidente e chairman.
Todo esse renome foi abalado em maio, quando Reid foi acusado por uma ex assistente de ter a assediado. Com essa abertura, outros ex funcionários o acusaram de machismo, citaram situações envolvendo comportamentos constrangedores e exigências sexistas.
O rolo todo ~coincidiu com sua renúncia como líder da Epic Records, nos levando a concluir que há, sim, muito fundamento nas alegações. Afinal, quem não lembra do caso Dr. Luke? O produtor também foi afastado de seu papel de CEO da Kemosabe Records após ser processado por Ke$ha.
Em paralelo, a internet foi tomada pelas acusações contra Ben Hopkins, do PWR BTTM. Rumores de vítimas do cantor se espalharam por fóruns online e comunidades LGBTQ. As alegações ganharam força quando diversas atrações de abertura cancelaram suas participações na turnê. O PWR BTTM ruiu na mesma rapidez com a qual se destacou na cena alternativa e teve o contrato rompido com a gravadora Polyvinyl. Até o momento, boa parte de suas músicas foram retiradas das plataformas de streaming.
And that’s it. That the tea. Until more tea emerges. #PWRBTTM NO. ABUSERS. IN. THE. SCENE. pic.twitter.com/q1awVnrlKH
— kitty (@hentittiez) May 11, 2017
Tudo isso, é claro, reverberou nas redes sociais e chegou aos festivais de música. O resultado? Maior empenho em combater esse tipo de crime.
A produtora Do LaB, por exemplo, é uma dessas. Responsável pelo Lightning in a Bottle, ela resolveu promover aulas com médicos e psicólogos. O intuito é conscientizar e orientar os fãs e o staff do evento. O ‘Creating Safer-Braver Spaces: Consent Culture and Social Care’ visa auxiliar equipes em caso de perigo sexual desde a primeira instância. “Os times são treinados a agir rapidamente, oferecendo suporte e criando um ambiente seguro para todos”, revela Erica Seigel, coordenadora da ação.
O histórico da equação abuso x festivais de música é assustador. Numa rápida pesquisa, podemos encontrar depoimentos de mulheres que foram seguidas por homens, apalpadas e até tiveram suas roupas violadas em plena multidão. Algumas chegaram a parar de frequentar grandes eventos.
Vamos falar sobre Sara St Hilaire, por exemplo, RP do mercado musical de Los Angeles. Para ela, há um “senso de comunidade e liberdade” mal construído nos festivais. O motivo? A ampla exposição à bebida alcoólica e às drogas. Essa combinação leva muitos homens a se aproveitarem da vulnerabilidade e do caráter anônimo de uma situação onde há milhares de pessoas ao redor. “Eu me lembro que era jovem quando passei por certas situações e não entendia nada sobre assédios. A sociedade nos cria para pensar que ‘garotos serão sempre garotos’ e isso vira uma desculpa”.
St. Hilaire ainda vai além: “Uma vez, um cara me perseguiu por cinco quarteirões depois de um evento e só se afastou quando eu peguei uma pedra e finalmente tinha uma arma contra ele”. Nesse percurso, segundo a própria, havia muitas pessoas e ninguém se prontificou a ajudá-la.
“Na maior parte das vezes, nós nos calamos porque não queremos ser taxadas como chatas e difíceis de trabalhar”.
Confissão semelhante foi feita por Alice Whittington, DJ e promotora de festas em Londres. “Há alguns anos, um cara entrou na minha cabine, me pegou por trás, segurou minha cintura e começou a falar coisas grotescas no meu ouvido. Parecia a maior demonstração de poder porque eu sentia que não poderia reagir normalmente“.
Buscando evitar situações como essa, a produção do Coachella e Stagecoach aumentou a iluminação nas extremidades dos eventos e a polícia de Indio, na Califórnia, busca ser mais proativa na abordagem.
No Decibel, membros da equipe distribuem cartões alertando sobre consentimento. Algumas boates de Los Angeles já servem “angel shots”, isto é, bebidas com nomes específicos que funcionam como codinomes para pedidos de ajuda. No Glastonbury, um palco apenas voltado para todas que se identificam como mulheres foi inaugurado no ano passado (leia mais sobre isso por aqui). Por fim, o Electric Forest, nos Estados Unidos, já desenvolveu um camping extra exclusivamente para o público feminino.
Essas iniciativas para extirpar os crimes sexuais acabaram dando luz ao Project Soundcheck, criado em 2014. O grupo é focado em treinar equipes de segurança para eventos de grande porte, orientando-os como intervir da melhor maneira. “Quando olhamos para festivais, local, nacional e internacionalmente, vemos similaridades com a dinâmica social e a cultura do estupro”, pontua Stefanie Lomatski, fundadora.
“Quando os festivais não olham para a cultura do estupro, então eles ignoram o assunto e contribuem para espaços perigosos”.
This guy wins the award for worst fashion/lifestyle choices at @coachella. I’m not easy to offend, but this is shitty pic.twitter.com/fyjod24nAx
— Jemayel Khawaja (@JemayelK) April 12, 2015
Levando tudo isso em consideração, o movimento The Safer Spaces tomou forma. Criado pela Associação Independente de Festivais do Reino Unido, o projeto reuniu 28 dos maiores eventos do país, como Bestival, Secret Garden Party, End of the Road e Parklife. No dia 8 de maio, um blackout tomou conta dos websites participantes com a hashtag #saferspacesatfestivals ao fundo. A ideia era transformar todas essas páginas em plataformas de debate quanto ao tema, incentivando os entusiastas dessas festividades a se engajarem na causa e dividirem suas experiências.
Check out the @AIF_UK campaign for #saferspacesatfestivals we fed into, supported by @EOTR @Bestival @SecretGardenHQ @LatitudeFest & more pic.twitter.com/1w6AIE5tgB
— Rape Crisis E&W (@RapeCrisisEandW) May 8, 2017
Na Inglaterra, por exemplo, dois homens foram presos no Reading por estupro. Outro foi condenado por abusar sexualmente de duas mulheres inconscientes e um caso de estupro coletivo foi reportado no Latitude. Mel Kelly, da organização Safer Gigs for Women, ressalta que os números não são baixos e, sim, a quantidade de denúncias. Ela ainda opina que precisamos trabalhar nossas atitudes desde o primeiro momento, começando pela mentalidade social.
Segundo Kelly, culpabilizar a vítima ainda é muito comum nesses ambientes. Muitos frequentadores justificam esses crimes com a quantidade excessiva de bebidas por parte das mulheres e até o tamanho de suas roupas. Estamos em 2017, mas os discursos parecem saídos de 1920.
E como podemos melhorar esse cenário?
Segundo especialistas, nada irá mudar enquanto não lidarmos efetivamente com a diversidade. Devemos, portanto, inserir mais mulheres e membros da comunidade LGBTQ na produção, planejamento e todos os âmbitos possíveis, mudando essa dinâmica. Também precisamos tomar a frente dessas questões e engajar a todos nessa luta, sinalizando quando algo soa forçado ou ameaçador. Para isso, é necessário conscientizar e encorajar donos de bares, boates, casas de show, organizadores de eventos em espaços públicos e privados e equipes de segurança em geral através de aulas, workshops e treinamentos. A arte e o ativismo andam lado a lado e a construção por uma sociedade melhor depende intrinsecamente de cada um de nós. We can do it!