Guia dos Dançarinos das Galáxias: Glastonbury 2015 (parte 1)


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Você não escolhe o Glastonbury, é ele quem escolhe você. Para poder ter direito a comprar um ingresso deste que é tido como um dos maiores festivais de cultura alternativa do mundo, primeiro deve preencher um formulário com uma série de infos pessoais e torcer para que seja aceito nessa tribo estrelar que atualmente conta com cerca de 180 mil pessoas por edição. E nem tudo estará garantido após ter seu cadastro ser aceito… Uma vez que a venda de ingressos on-line estiver liberada, você terá apenas algumas horas para conquistar seu passaporte, isso antes mesmo de qualquer atração ter sido anunciada.

Conosco felizmente o processo ocorreu por meio de rotas alternativas… Não pense que compramos ingressos de cambistas ou coisas do tipo pois isso é praticamente impossível, uma vez que seu nome e foto vão no seu ingresso e no Reino Unido as pessoas realmente são bastante criteriosas nos processos de fiscalização. Fomos convidados pelo nosso amigo Luke Howard, DJ lendário integrante da crew Horse Meat Disco, a fazer parte do comboio do setor (ou arena?) Block 9. Isso facilitou nossa vida, o que gerou uma visão positiva – e obviamente enviesada – de toda experiência.

Para começar, nos separaram dos outros mortais e conseguimos ter acesso ao perímetro deste evento gigantesco por estarmos dentro da van que trazia parte dos DJs, dançarinos e turma que iria cuidar da produção do Block 9. Depois, tivemos a felicidade de acampar junto a todo staff de setores alternativos do festival (como Shangri-La, Avalon etc), o que nos garantiu maiores horas de sono durante o dia e acesso a instalações sanitárias menos, vamos dizer, turbulentas.

Sim, banheiros num festival para esse contingente será sempre um assunto no mínimo complicado e nisso público britânico comprova que não tem frescuras. Mas cabe observar uma coisa incrível: toda água disponível no festival é própria para o consumo, ou seja, você precisa apenas de uma garrafinha para ter acesso a refil durante toda experiência.

No entanto, cabe voltar um pouco atrás pois nossa viagem começou uma semana antes de quando pisamos nos campos que um dia também receberam Rei Arthur e sua corte: consultamos uma das maiores bibliotecas vivas voltadas a cultura pop moderna, curiosamente localizada aqui em Brasília, mais precisamente no lar de nosso eterno professor Claudio Bull, que nos emprestou o DVD oficial do Festival, dirigido pelo Julian Temple e lançado em 2006.

Nele tivemos oportunidade de conhecer e entender toda a tradição e movimentação envolvida nesse encontro que acontece desde início da década de 1970 numa região campestre e cheia de fábulas localizada próximo ao Stonehenge. Esse filme é sem sombra de dúvidas um ótimo programa para se entender um pouco sobre como um ponto de encontro da contracultura hippie européia, capitaneado pelo “Sir.” Michael Eavis, se transformou numa plataforma especial, que contribuiu com mudança de comportamento de toda uma nação e impulsionou o desenvolvimento de movimentos como o Greenpeace, CND (Campanha para Desarmamento Nuclear), WaterAid entre outros.

New Kid in Town

Chegamos na quarta 24/06 e, após levantar nosso acampamento no mais fiel estilo Moonrise Kingdom (graças a inestimável retaguarda fornecida pelo agora “tio” Luke), partirmos para ponto mais alto dessa que se transforma na terceira maior cidade da região central do Reino Unido nos dias que o festival está acontecendo, a fim de fazer um primeiro reconhecimento do campo de batalha.

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No caminho, passamos por várias arenas ainda em fase de retoques finais, onde foi possível ver uma enorme quantidade de pessoas envolvidas no preparo dos cenários todos cuidadosamente pensados e planejados para proporcionar experiência massiva de outro planeta (há cerca de 30 mil pessoas empregadas pelo Festival). No alto do morro, local favorito do vocalista do The Clash Joe Strummer (motivo pelo qual eles construiriam em sua homenagem um setor calmo e pacífico chamado de Strummerville), a vista era de tirar o fôlego.

Imediatamente bateu um sopro de medo, responsabilidade e gratidão por estarmos tendo a possibilidade de poder viver essa aventura. A coisa é gigantesca e ainda faltavam 2 dias para a programação dos big stages começar, quando então a maior parte do público iria chegar. Logo tomamos consciência que nossa programação de shows teria de ser repensada, uma vez que fisicamente seria impossível percorrer em 10 minutos a distância entre arenas só para ver aquele artista que lançou um disco legal no verão passado.

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Vai ficando claro que a “cidade” é desmembrada em vários bairros (ou stages, palcos, arenas), cada qual com sua linguagem, estética, perfil de público etc. Com o tempo, fomos tendo a certeza de que não desembarcamos à toa num dos locais mais vibrantes e interessantes que já tivemos a oportunidade de vivenciar: o Block 9. Com apenas 9 anos de Glastonbury, foi criado por Gideon Berger e Stephen Gallagher, dupla especializada em construir/desenvolver realidades temporárias, para preencher uma grande lacuna nos eventos de grande porte do Reino Unido: a existência de uma área destacada para receber da melhor maneira possível o público GLS.

Hello Houston, this is Block 9

Para gente, trata-se de uma base espacial aos moldes duma estação russa dos anos 70/80 que tem como princípios mais marcantes a liberdade e a boa música, presentes o tempo inteiro de maneira contagiante, criando um ambiente gostoso e ultra-divertido para receber entidades viajantes de outras galáxias.

Dentro deste stage, há pelo menos 5 pistas de dança, com destaque para o Genosys – que busca criar elo entre passado, presente e futuro da música eletrônica (Four Tet, Prosumer, Andy Butler, Erol Alkan e Cerrone são alguns dos nomes que passaram por aqui). London Underg’nd (batidas mais pesadas, público mais jovem e nada queer, tocando DJs de bass como Loefah, por exemplo) e o NYC Downlow (voltada ao house e a disco music interplanetária, com várias performances de drags e de nomes como Luke Solomon, Midland, Eats Everything, Joe Claussel e claro, Horse Meat Disco).

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Alguns desses portais são os únicos lugares do festival onde você vai precisar pagar alguma coisa novamente para poder entrar, sempre com a renda destinada a alguma instituição de caridade. No NYC Downlow são 2 libras, sendo que você tem a chance de poder mostrar suas genitálias para o hostess em troca do acesso gratuito. Eles nos disseram que adoram!

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Green Area on the air

Nada de queimar largada, dormimos cedo e acordamos empolgados na quinta 25/06 quando os palcos e arenas secundários já começavam a apresentar sua programação. Primeira preocupação era de encontrar um local responsa para poder repor as energias de maneira inteligente durante nossa odisséia. Naturalmente nos dirigimos para a “Green Area”, habitat dos famosos “viajantes”, povo nômade responsável pelas correntes mais alternativas e expansivas do Festival, presentes de maneira ativa desde os anos 80. A impressão que tivemos foi que ao passar das décadas foram transformando sua presença radical, contestadora e libertária numa existência pacífica, harmoniosa e transcendental, responsável por propagar o ideal hippie de maneira construtiva, focado em suas melhores essências.

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Ali você pode encontrar alimentação natureba de todos os tipos (o espaço da permacultura fica como uma dica preciosa), mercadinhos vendendo produtos peculiares (por ex mandalas, barcos de aquário e casacos indianos), workshops (de como construir sua própria casa usando apenas toras de madeira até como incorporar LEDs na sua fantasia), espaços de shows (claro!) e o Healing Field. Esse chamou nossa atenção e foi muito útil durante toda aventura. Dividido em 4 areas, cada uma correspondente a um elemento básico da natureza, oferece massagens, yoga, tai chi chuan, reiki e mais uma série de terapias voltadas a recuperação (ou entretenimento?) energética do público. Pelo que entendemos, como eles não pagam para poder estarem lá, em geral as atividades (e não os produtos…) ficam na base da contribuição voluntária (donation). Ou seja, você pode se fartar de dançar a base de alguma substância inventada a menos de 3 meses e depois se jogar nas mãos de um curandeiro que vai realinhar a sua áurea através dum trabalho xamânico com sinos…

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Down in the neighborhood

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Fluxo de pessoas em crescimento exponencial a cada hora, todos celebrando o ótimo clima ensolarado. Como oficialmente o Glastonbury só começa na sexta, estavam todos visivelmente segurando o jogo. Me aventurei em cruzar todo o mapa em direção ao The Beat Hotel, stage dedicado a música eletrônica mais grooveada e não tão acelerada onde estavam tocando a dupla baleárica Soft Rocks. Calor transformou essa arena num micro-ondas, mas foi possível marcar outro ponto amistoso em terras mais distantes, por onde nos próximos dias se apresentariam heróis como Michael Mayer (Kompakt), Seth Troxler, Simian Mobile Disco vs Bicep, Groove Armada e Greg Wilson.

Na volta foi possível conferir os últimos arremates do Pyramid Stage, palco principal do evento voltado as apresentações para mais de 50 mil pessoas. Tipo, o local dos principais headliners, onde a típica família inglesa poderia degustar de gênios (?!) do quilate de Kayne West e Pharrell Williams, figuras lendárias como Patti Smith e Lionel Richie e apostas como Alt J e Courtney Barnett. Deu para dar uma conferida também em parte da área raver, muito bem alocada nos palcos do Siver Hayes, onde jovens britânicos em claro por mais de 48h disputariam às vezes de maneiras nada simpáticas um lugar ao sol para ver apresentações de Joy Orbison, Pearson Sound, Fatboy Slim, JESuS, Jamie Jones, Roni Size, Herbert Live, Redlight, Ellen Allien… Ou seja, grande parte dos nomes que habitam há anos os charts do Beatport.

Uma vez bem embasados e melhor familiarizados com o mapa do gigante, sabíamos que estávamos parados no cume de uma grande montanha russa que só seria desligada daqui a 4 dias. Nosso mergulho envolto por velocidade, suspense, tesão, mágica, expectativas, sonhos e outras químicas que cutucavam nossos estômagos sofreria um batizmo já na primeira apresentação marcada em nossa agenda, a do titio Cerrone, no Block 9. Mas esse é assunto para outro capítulo, que conto amanhã aqui no Pulso.

– Fotos: Julia Hormann

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