Aproximadamente 38% dos frequentadores de festivais no Brasil declararam espontaneamente terem experimentado algum tipo de substância ilícita durante estes eventos. Das drogas lícitas, 81% afirmaram consumir bebidas alcóolicas e 33% cigarros. Os dados são da pesquisa Pulso Zeitgeist, realizada em dezembro de 2015, e respondida por mais de 600 pessoas de 22 estados do Brasil.
Os primeiros registros de consumo de drogas pela humanidade são conhecidos há pelo menos 8.000 anos. A mais antiga língua escrita conhecida, a suméria, já fazia referências à papoula, flor de onde se extrai o ópio, conhecida naquela época como “a planta do prazer”. No caso da maconha, o historiador grego Heródoto anotou, em 450 a.C., que a planta era queimada em saunas para dar barato em freqüentadores (“O banho de vapor dava um gozo tão intenso que arrancava gritos de alegria”, registrou). Já a cocaína apresenta indícios de consumo pela civilização dos Andes há pelo menos 2000 anos, servindo tanto para rituais xamânicos quanto para aliviar sintomas da altitude.
O fato é que, com exceção dos esquimós, “nunca houve uma sociedade sem drogas”, afirma o médico Flávio Mesquita, vice-presidente da Associação Internacional de Redução de Danos. Bastou chegarem por lá os primeiros exploradores, que os habitantes do Polo Norte rapidamente desenvolveram elevadas taxas de alcoolismo.
“Não há nada natural em estar sóbrio”, provoca o historiador, poeta e biógrafo literário inglês Davenport-Hines. “Seres humanos precisam de momentos de fuga de sua existência costumeira”, completa. A afirmação não poderia ser mais contemporânea. Também nos ajuda a entender o boom dos festivais cada vez mais focados em experiências imersivas, além da relação destas zonas autônomas temporárias com o consumo de substâncias psicoativas.
O Que Podemos Aprender Com a Tragédia Timewarp
Há pouco mais de três meses, cinco jovens faleceram no festival Timewarp em Buenos Aires. Em comum, todos haviam aparentemente consumido um mesmo tipo pílulas de PMMA (droga similar ao ecstasy). Problema com um lote adulterado? Não é tão simples assim…
Segundo investigação da Thump (veja aqui: Por que Buenos Aires está em guerra contra a música eletrônica?) havia indícios de um claro desastre nesta edição do Timewarp. Fontes do governo argentino informaram que aproximadamente 24 mil pessoas compareceram ao festival, apesar da produção ter uma capacidade aprovada para 13 mil pessoas. O calor excessivo foi agravado quando a partir das 2 horas da manhã o evento ficou sem o sistema de água encanada e gratuita. O preço da água nos bares era de 40 pesos (aprox. R$ 10,00), as filas eram colossais e os bares lotados. Considerando todo o cenário, esses 5 jovens pagaram caro pelo que poderia ter sido uma tragédia de dimensões maiores.
A noticia do Thump também apresenta um esquema de corrupção pesado, de promoters locais que subornam autoridades oficiais para realizar eventos fora das condições permitidas. Vale lembrar que em 2004, 194 pessoas morreram queimadas ou asfixiadas depois de um incêndio no clube Cromañon, também em Buenos Aires.
A lição que podemos aprender do incidente Timewarp é que quase sempre o problema não é um só. Existe toda uma cadeia de responsáveis para além da droga. Do promoter que realiza um festival de forma irrresponsável. Da polícia e segurança pública, que fazem vista grossa. Do público, inconsequente e mal informado. E, claro, do governo e sociedade, por tratar a questão das drogas de forma unilateral, censurada e coercitiva.
Enquanto não começarmos a falar abertamente sobre as drogas, continuaremos como o juiz Roberto Gallardo, que baniu a realização de festivais de música eletrônica na Argentina, como se varrer a sujeira pra debaixo do tapete fosse de fato resolver o problema.
Não Existe Diálogo Que Não Passe Pela Redução de Danos
Mas como lidar com a questão? Conversar é um começo. Conhecer a Redução de Danos, que trata o consumo das drogas sob um ponto de vista da saúde ao invés do criminal, também.
Diversas iniciativas sobre a redução de danos podem ser observadas em festivais ao redor do mundo. E não só para as drogas ilícitas. Nos Estados Unidos, por exemplo, é comum encontrar comunidades de apoio a alcoólatras, informando e educando pessoas sobre programas de recuperação.
Patric Whelan é um frequentador de festivais e voluntário nesta campanha. Ele monta as tendas Sober Side (Lolapalooza), SoberRoo (Bonnaroo) e Lightning Without a Bottle (Lightning In a Bottle) e em pelo menos mais outros 10 festivais por ano nos EUA (leia aqui: Se Beber Não Dance – A Rota dos Festivais Sem Álcool).
O objetivo destas tendas é o mesmo – criar um grupo de apoio e promover encontros e palestras ao longo do festival para ajudar pessoas que tenham problemas compulsivos com drogas (ilícitas ou não).
Outras iniciativas como a Dance Safe e a BunkPolice também buscam apoio na divulgação de informações e troca de idéias como medidas de redução de danos. Ambas estão presentes em diversos festivais, buscando educar as pessoas sobre os efeitos das drogas e como evitar “bad trips”. Eles também testam gratuitamente a qualidade das drogas para informar as pessoas o que, de fato, elas estão consumindo.
Através de seus sites, tanto a Dance Safe quanto a BunkPolice oferecem uma vasta quantidade de informações sobre as principais drogas consumidas em festivais, além de comercializarem kits para testes de drogas.
Infelizmente, a situação das drogas no Brasil ainda é vista exclusivamente de forma criminosa. Falar em redução de danos é um tabu, embora coletivos como o Balance e ResPire mereçam elogios pelo trabalho que fazem em nossos festivais (leia aqui: ResPire: As festas precisam investir mais em Redução de Danos).
Mesmo nos EUA, porém, a redução de danos ainda encontra resistência. Neste ano, Pasquale Rotella, fundador da Insomniac Events, vetou a participação da Dance Safe neste festival Electric Daisy Carnival. Em 2009, o próprio Pasquale disse ter produzido uma série de videos com artistas da cena como A-Trak, Kaskade e Steve Aoki, em que estes DJs informavam e alertavam sobre os riscos das drogas. O condado de oficiais de Los Angeles proibiu a veiculação dos vídeos. Embora não tenha sido formalmente anunciado pelo produtor, o veto da Dance Safe neste ano no EDC certamente foi uma forma de censura imposta por órgãos públicos. Da mesma forma que no Brasil, onde o simples ato de criar um diálogo sobre drogas pode ser confundido com uma forma de incentivar seu uso.
Em que ano estamos mesmo?
Entrevista Com Marcos Salles, Um Especialista em Redução de Danos
Por se tratar de um assunto polêmico extenso, bati um papo com Marcos Salles, advogado e empreendedor social, autor do livro “Política de Drogas no Brasil – Temos o Melhor Modelo?”.
Parte do estudo do Marcos também pode ser encontrado em uma série de 8 artigos do site Politize! (clique aqui, vale a pena!)
(Pulso) Como foi seu primeiro contato com a política de redução de danos? O que te levou a estudar o assunto e , depois, a escrever um livro sobre?
(M.S.) Logo que iniciei os estudos sobre política de drogas para a monografia do curso de direito, em 2011, me deparei com uma abordagem que até então era uma novidade completa na minha vida, a redução danos. O meu primeiro contato foi com um livro sobre políticas alternativas em relação a maconha do Denis Burgierman (diretor de redação da Superinteressante). Entender que existiam novos caminhos possíveis que pudessem nos levar a outra realidade muito mais lógica que a atual me fez abrir os olhos. Estudei dois anos para construir a minha monografia, que depois se tornou o livro e em seguida os posts do Politize.
(Pulso) Já li que o “problema das drogas” é uma luta que deve ser combatida de forma integral, ou seja, não basta usar uma única ferramenta, é preciso encará-la com um conjunto de ações. Pode falar um pouco sobre como lidamos com esta questão hoje? Quais são as dificuldades para conseguirmos implementar uma política de redução de danos no Brasil?
(M.S.) Na maior parte do mundo lidamos com as drogas através da proibição, estigmatização do usuário e combate ostensivo, a famosa “guerra às drogas”. A droga foi proibida em grande parte por motivos sociais, raciais e econômicos (saúde pública certamente não era o foco, apesar do discurso ser esse). Em todos os lugares do mundo já havia o “problema” da imigração de pessoas de baixa renda. No Brasil os negros consumiam maconha, logo, criminalizar a droga ajudaria a “controlar” esse grupo social. Nos EUA, eram os mexicanos com a maconha, os chineses com o ópio (heroína) e os negros com a cocaína (leia mais aqui: Política de Combate às Drogas, Como Tudo Começou).
As dificuldades são em grande parte impostas por discursos nada científicos que atribuem às drogas a destruição de familias, lares e etc… De modo que, ao reconhecer que a imensa maioria dos usuários (quase 90%) não possuem problemas com o consumo e que mesmo aquele usuário problemático possa ser um doente passível de tratamento e não um bandido, de acordo com os falsos moralistas, isso estaria passando a “mensagem errada” para a população.
(Pulso) Pode citar alguns exemplos bem sucedidos adotados em outros países?
(M.S.) O estado do Colorado, nos EUA, legalizou o consumo de maconha para fins recreativos (o que eles chamam de “regular a maconha como o álcool”). Como resultado, o consumo não disparou como previam os alarmistas, não há mais mortes em decorrência da violência do tráfico e o estado ganhou tanta grana com o imposto que segundo uma lei local teve que devolver uma parte à população, grana essa que está sendo usada para reforma de escolas.
Portugal descriminalizou a posse de drogas em 2001, redirecionando a política para um modelo com ênfase na saúde pública. Lá, se você for pego com alguma droga, leva apenas uma multa administrativa (tipo de trânsito) e dependendo do seu histórico passa por um acompanhamento psicológico, social e familiar. A Espanha implementou clubes cannabicos, onde pequenos consumidores se unem para produzir em conjunto. Vancouver oferece locais controlados de injeções de heroína para dependentes, reduzindo drasticamente o número de mortes por overdose. E a Holanda também regularizou a compra e consumo da Cannabis.
Em comum, todos estes países praticaram a política de Redução de Danos, buscando não enxergar o assunto como um problema policial, e sim, social e relacionado à saúde (leia mais aqui).
(Pulso) Ainda pegando carona na pergunta anterior, O Sónar Barcelona, entre outros festivais, coloca em sua entrada uma área para teste de drogas. Qual sua opinião sobre este tipo de prática?
(M.S.) Existem muitos festivais – como o Universo Paralello que criaram áreas de “controle de bad trip” onde você pode ter atendimento com médicos, psicólogos, ombros amigos e etc (leia aqui: Review Universo Paralello 2016).
Outros exemplos são os projetos ResPire, Balance e Balanceará, que atuam em festivais como Pulsar – Cachoeira Alta e Respect Arte e Cultura. Eles criaram kits com informações e utensílios para um consumo mais consciente.
Esse tipo de prática parte do princípio de que o problema não está na droga e sim na forma como ela é ingerida (se feita com responsabilidade a chance de dar alguma coisa errada é mínima). O índice de usuários problemáticos no mundo é bem baixo (cerca de 10%), o que não justifica todo um aparato para barrar o seu uso e comércio. Imagina se tivéssemos informação de qualidade bem difundida, diálogos abertos e sinceros e atendimento especializado… esse índice poderia cair mais ainda.
Sabemos que a educação é o principal caminho para lidarmos com a “problemática” do uso de drogas, mas precisamos investir em um modelo que priorize a informação de caráter científico e não moral.
Marcos H. N. de Salles
Advogado, formado em Direito pela PUC-Rio e autor do livro “Política de Drogas no Brasil – Temos o Melhor Modelo?”. Atualmente é sócio da Carioteca – empresa estimuladora de comportamento colaborativo – e faz parte da Goma – associação de empreendedores em rede na zona portuária do Rio.
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Por aqui, vamos fazendo a nossa parte para uma cultura de festivais mais segura e instruída.
Fontes:
. Super Interessante – Coleção Para Saber Mais: Drogas (Rodrigo Vergara) e Maconha (Denis Burgierman)
. Politize: Política de Drogas
. ResPire
. Balance