Tinha tudo pra dar errado. O dia amanheceu cinza chumbo. O céu, carregado de nuvens, marcava 14º C ao meio-dia e a previsão era de chuva sem parar.
Por sorte – e um tanto de juízo que vem com a idade – decidimos não acampar. Carol e eu alugamos um apartamento próximo à Central Station de Copenhagen, cientes de que levaríamos 1 hora para ir e vir do festival. Pagamos cerca 20 euros por dia, cada um de nós, em transporte (um trem até a estação de Roskilde e depois um ônibus até a entrada do festival).
Na minha cabeça, passava imagens de lama, chuva e caos. Aquelas que a gente vê nas fotos do Woodstock ou Glastonbury.
Para os dinamarqueses, porém, era mais um dia de verão. Dentro do trem, pessoas sorrindo e animadas, carregando packs de cerveja, mochilas e barracas de camping.
Chovia absurdamente quando saímos do trem. Nossas capas de chuva não protegiam as calças e nem as mochilas. Chegamos semi-ensopados na entrada do festival, agradecendo o bendito dia que decidimos investir uma grana comprando uma boa bota Timberland e um eficiente casaco corta-ventos North Face.
Apesar do tempo, estávamos preparados. Mais importante, dispostos a abraçar de peito aberto a experiência Roskilde, um dos festivais que mais desejávamos conhecer neste ano. Não nos arrependemos.
A Primeira Impressão É A Que Fica
O antí-climax do tempo ruim foi quebrado assim que passamos pelos portões do festival. Cada um de nós ganhou um guarda-chuvas. Deixamos nossas mochilas no locker (gratuito), fomos até a sala de imprensa e tomamos ambos dois copões de café.
Saímos para explorar a cidade temporária de Roskilde, criada para receber 80 mil pessoas por dia ao longo de seus 8 dias. No aplicativo do festival, há 3 mapas para pesquisar: um geral, outro só para pessoas deficientes e um só para comidas e bebidas. Aliás, esse foi o festival que estivemos que vimos o maior número de pessoas deficientes. O cuidado do festival com cadeirantes é um exemplo que todo produtor de eventos deveria se inspirar.
Depois do guarda-chuva na entrada, nossa segunda surpresa foi encontrar à venda nos bares uma caixa, como as que temos no Brasil de leite, só que com 1 litro de vinho orgânico (aprox. 10 Euros).
No Roskilde, 90% de todos os produtos vendidos no festival são orgânicos. Para 2018, a meta é chegar a 100%.
Havia todos os tipos para todos os gostos. Inclusive a sensação deste ano, uma tenda especializada em insetos, que servia de limonadas com gafanhotos e maioneses com larvas (leia aqui: Quer Saber o Futuro dos Festivais? Conheça o Roskilde).
A preocupação com a alimentação é algo perceptível em qualquer lugar que você vá na Dinamarca. No Roskilde, não era diferente. Até pipocas orgânicas havia por lá. A Tuborg, cerveja local e principal patrocinadora do festival, produziu uma edição orgânica especialmente para o festival.
Política Dentro e Fora dos Palcos
Caixa de vinho numa mão, guarda-chuvas na outra, fomos assistir ao show do Seun Kuti & The Egyptian 80. O filho do Fela Kuti abriu o palco Orange, principal do evento, espantando o frio e chuva.
Rifes de guitarra, percussão e discurso político afiado: “Essa música é dedicada aos nossos antepassados, que morreram pela nossa liberdade. Nada contra Jesus, mas é para quem morreu mesmo. Não entendo essa coisa de ressucitar.” “(Os artistas) podem ir no seu backstage, cheirar sua coca, injetar sua heroína… mas se eu acendo um baseado, eles vem e me dizem não, não!”. “Muito se fala hoje sobre noticias falsas (fake news), mas na Africa a gente vive esta realidade há mais 400 anos”.
O tom politizado do Roskilde é parte inerente de seu DNA. O festival completou 45 anos em 2017, é produzido sem fins lucrativos e é um dos poucos remanescentes ainda a respirar os princípios da contra-cultura dos anos 60. Dentro e fora do palco, inúmeras iniciativas foram criadas de forma a estimular o pensamento crítico de seus frequentadores.
A programação artística do Roskilde se esforça em buscar um equilíbrio entre a cultura pop (The XX, Lorde, Arcade Fire e Foo Fighters foram alguns dos headliners deste ano) com a new world music (o Brasil foi representado pelo Baiana System e Elza Soares, mas também havia artistas senegaleses, marroquinos, jamaicanos, coreanos etc).
Discursos políticos são frequentes, reforçadas pelas projeções que nos levam da beleza gélida da escandinava para tribos desconhecidas da África.
Somos Todos Imigrantes
O tema do Roskilde deste ano foi a igualdade de gêneros e inclusão social. Recebemos da organização um release com 20 páginas (!) apenas para explicar todas as ações que estavam promovendo neste sentido.
De todas as ações promovidas pelo festival, a que mais me sensibilizou foram os catadores de lixo. Eram em sua imensa maioria imigrantes (os poucos europeus, voluntários). Vi asiáticos, africanos, árabes, latinos… No meio de tanta gente alta e loira se divertindo, ver aquele povo, no meio da chuva, agachado catando lixo por algum trocado foi uma imagem que me deixou incomodado ao longo do festival.
No final do sábado, me dirigi ao stand de cartões cashless para devolver o meu e receber a grana que tinha saldo. A fila para receber o dinheiro era a mesma dos catadores de lixo. Cada saco que eles enchiam, recebiam um ticket. Depois de um longo dia de trabalho, trocavam-nos por dinheiro. Na minha frente estava um negro bem alto, provavelmente africano. Como ele, eu era diferente das demais pessoas ali. Ele me perguntou algo em inglês, acabamos conversando e mencionei que havia viajado uma longa distância até chegar ali. Ele falou: “Eu também. Estamos na mesma situação”. E me deixou passar na sua frente (enquanto eu precisava apenas devolver um cartão, ele tinha pelo menos uns 30 tickets para trocar).
Agradeci a gentileza e saí imaginando que outras afinidades ele e eu teríamos em comum.
Roskilde é um festival que te faz pensar.
Hábitos Bárbaros… Difíceis de Abandonar
Outra coisa que chamou atenção foi o xixi da galera. Foi – definitivamente – o festival com mais opções de banheiros.
Os homens tinham opções diversas: urinóis espalhados pelo meio do festival, fixados às árvores e até um painel de plástico que ficava colado nos muros, elaborado especialmente para a galera que curte um mijo na parede. Todos sustentáveis, com canos que levavam a urina direto para um sistema de coleta e tratamento.
Ainda assim, os nativos pareciam não fazer o menor esforço para ir até eles. Faziam suas necessidades onde quisessem, muitas vezes (mas muitas mesmo!) num muro do lado de um urinol. Não fez o menor sentido pra mim aquilo.
Se por um lado a consciência alimentar e a educação com o colega de pista foram impecáveis, o ato de urinar parecia não ter mudado em nada desde a época em que eram bárbaros.
Carol, minha companheira de pistas, queixou-se bastante também da falta de opções criativas de banheiros para as mulheres. No caso delas, havia apenas os banheiros de sempre (ao menos não eram químicos). Muitas das meninas faziam como os homens. Despiam-se sem pudor, no meio da galera, e mandavam ver in natura.
Uma Vez no Clã, Para Sempre no Clã
Pouco antes do primeiro show, Carol e eu nos abrigamos em uma tenda para nos protegermos da chuva. Como nós, havia um mar de gente encaixadas como peças de Lego nos poucos espaços vazios. Um casal sentou ao nosso lado, pediu pra tirarmos uma foto deles. Nos levantamos quase juntos e, sem combinar, caminhamos para a mesma pista. Assistimos parte do show juntos, sem maiores interações.
Tem coisas mágicas que só acontecem num festival. Por exemplo, encontrar o mesmo casal, nos mesmos shows, várias vezes. Já no final da noite, indo em direção ao Trentemoller (ídolo local), nos esbarramos de novo e viramos amigos. A Gabriella e o Martin eram voluntários, trabalharam pela manhã e pela noite podiam curtir o festival. Eram locais, ambos de Copenhagen. Ela empolgadíssima pra uma viagem para a America do Sul no final do ano. Ele, fã de progressive trance e hiphop. E, nós, os exóticos turistas de um país longínquo de gostos musicais afins.
Trocamos contatos e assistimos juntos ao show do Trentemoller, que foi mais bacana pela companhia que pela música. No dia seguinte, combinamos de nos encontrar no Ice Cube. Foi “O” momento do Roskilde. Primeiro, porque o sol apareceu. Segundo, porque foi o show mais cheio que vimos. Um mar de gente, uma vibe incrível e um novo grupo de amigos.
Martin e Gabriella nos incluíram no clã. Nos apresentaram a um grupo de amigos (eles eram 30, ao total) e nos chamaram pro camping de voluntários. Nos pagaram bebidas (como esse povo bebe!), trocamos histórias e eu os convidei para assistir ao show do Baiana System.
O grupo brasileiro tocaria na mesma hora do Arcade Fire, principal headliner do sábado, último dia do festival. Chegamos na pista uns 15 mins antes de começar e havia uns 15 gatos pingados por lá. Gabriella e Martin esboçaram uma reação de decepção… “Tá vazio, né?”, ela disse. Eu disse: “Vamos ver só o início, se não gostarem, a gente vai pra outra pista”.
O show do Baiana, pra variar, foi uma catarse coletiva. Os gringos enlouqueceram. Em 15 minutos, a tenda já estava semi-cheia. No final, aplausos, muito suor e gritos de bis. Seguindo o protocolo dos discursos políticos, Russo Passapusso puxou um “Fora Temer”, com a ajuda do guitarrista intérprete. Havia uma grande bandeira do Brasil na pista. Gabriella, Martin e os demais amigos dinamarqueses nos agradeceram intensamente, os olhos brilhando com a novidade (“obrigado, nunca teríamos tido esta oportunidade se não fosse você, foi o melhor show do festival!”). Deu orgulho.
Já combinamos nos vermos no ano que vem. Mesmo que não role, amigos de festival duram pra sempre.
Uma Experiência Que Vale Cada Centavo
O Roskilde é caro. A Dinamarca é cara.
O dinheiro são Coroas (crowns) e você toda hora tem que fazer contas para não torra-lo sem perceber. Entre passagens, alimentação e bebidas, gastamos cerca de 80 a 100 euros por dia (no primeiro dia foram 2 litros de vinho e no segundo, apenas 1 porque nossos amigos dinamarqueses não nos deixaram comprar mais). Mas o valor da experiência não tem preço.
Aqui no Pulso buscamos ir além da música porque acreditamos que festivais tem o poder de sintetizar o espírito de um tempo. Quanto mais festivais frequentamos, mais raros são aqueles em que “vira uma chave mental” na forma como vemos e sentimos as coisas. O Roskilde foi um destes.
Teve lama, chuva e frio. Mas vivemos ali naquelas 48 horas uma das melhores experiências da vida.
Quem diria?