Recife é uma capital com personalidade. Chegando na cidade, no primeiro Uber que tomamos, tocava o álbum clássico Afrociberdelia do Chico Science & Nação Zumbi. Qual o limite entre o clichê e clássico? Onde termina o saudosismo e começa a reverência? Não sei. Mas uma coisa é certa: ir até Recife e conhecer o festival No Ar: Coquetel Molotov é uma parada obrigatória para quem admira e/ou deseja conhecer um pouco mais da cena independente nacional da nova música brasileira (veja o review do Afonso Júnior ano passado aqui).
O festival, que acabou de completar 13 anos, é disparado o mais interessante que conheci neste ano. A começar pelo local. O que falta de identidade nas venues dos mega-festivais do eixo sudeste – realizados em sambódromos, autódromos etc – sobra no Coquetel. A Coudelaria Souza Leão é um sítio para a criação de cavalos há uns 30 minutos de carro da capital (R$ 45 – R$ 55 de taxi).
Fica no alto de um morro, onde se vê as luzes da cidade grande no horizonte, só que num pico cercado de natureza, árvores, sombras e grama verde (não-artificial).
Assim que se passa pelos seus portões, um serviço de 15 vans conduz (e traz) o público por uma floresta até a entrada da coudelaria. Um breve rito de passagem. Chegando lá em cima, ao lado do desembarque, um mercadinho com lojas de roupas, feira de zine, merchandising, artesanato, tatuagem e até tarô (bem que tentamos, mas já estava sold out. Dizem que ela é do babado…).
O público do festival também é um dos mais interessantes
Clima universitário, como se fosse uma grande festa das áreas de humanas das federais. Tinha muita montação, purpurina, todos os estilos, com uma predominância de mulheres, casais e GLBT. Poucos playboys – no final, havia um ou outro grupinho – e muita fumaça no ar. Zero área VIP, zero camarote. Gente educada, coisa rara em festivais do sudeste. Na noite anterior ao evento, rolou um show do Aerosmith. Os ingressos chegaram a custar R$ 500,00 (inteira). No Coquetel, para assistir mais de 30 atrações em 12 horas de festa divididas em 3 palcos, R$ 80,00 (inteira).
Os preços eram justos
Para padrões sudeste, baratos. Para quem não bebe Skol, patrocinador master do evento há 3 anos, havia um stand da Concha Y Toro. O vinho vinha bem servido e cada dose custava R$ 10,00. A cerveja, R$ 5,00. Uma dose de vodka, R$ 5,00. Detalhe: para consumir qualquer bebida, você precisava comprar o copo do evento (irado!). Poderia devolve-lo ao final e recuperar o dinheiro.
As dores do crescimento
No quesito alimentação, food trucks e opções de todos os tipos. Inclusive, brownies do tipo “gospel” e “deejah” (entendedores entenderão). Na hora do pico (das 22h em diante), porém, o festival pequeno começou a mostrar as dores de festival grande. Filas intermináveis. Faltou comida em alguns dos trucks. O tempo médio para se alimentar variava dos 30 minutos a uma hora. Os caixas também não deram vazão e até agora não entendemos como não havia um serviço volante, espalhado pelo festival.
Um dos pontos mais críticos do festival foram os banheiros. Poucos, muito poucos. Concentrados em um canto do festival afastado de todos os palcos, sempre lotados, com filas… Para um frequentador de festivais mais velho (e chato), como eu, é como um aviso constante, lembrando que ou você para de beber ou vai embora. Infelizmente, saímos antes dos dois últimos shows da noite – Karol Conka e Baianasystem. Foi uma escolha dolorida, mas assertiva: descobrimos que ao final do Coquetel, só para descer o morro nas vans do evento, o passeio que levava 5 minutos rolava uma fila de espera que poderia durar algumas horas… (nota: foi a primeira edição sold out do Coquetel).
Felizmente, os shows valeram a pena
E como! Meu coração bate no pulso da música eletrônica. Mas depois de quase duas décadas frequentando raves e festivais deste tipo, ir a um festival voltado para a música independente nacional me traz uma sensação de descoberta e excitação que dificilmente sinto hoje nas pistas clubbers. Me emocionei com a melodia do Baleia. Cantei junto com a lisergia maravilhosa do Boogarins. Fiquei de cara com a reação do público ao tecnobrega do paraense Jaloo (“– É um ser de luz, ôxi!”, escutei do casal ao lado). E, como todo bom festival, descobri três artistas que me impressionaram e me fizeram querer conhecer mais.
A banda Moodoïd, pra começar. Sempre fui fã da música eletrônica francesa (um dos meus álbuns favoritos deste ano é o “Mistèry” do grupo La Femme, pode escutar sem erro!). Liderada pelo guitarrista do Melody’s Echo Chamber, o grupo de Pablo Padovani é tudo que se espera de um bom show: puta presença de palco, integrantes que mais parecem ter saído de um filme do Almodóvar, figurino impecável caprichado no lurex e aquele carão francês ao mesmo tempo sexy e elegantemente fora do ritmo. Psicodelia, etnia e krautrock.
Som na Rural
As outras duas atrações aconteceram no espaço Som Na Rural. Mais tarde, fui descobrir que trata-se de um projeto para democratizar o acesso e produção marginal, fora do eixo mainstream e até mesmo do dito underground. Estes artistas apresentam-se numa kombi, que circula pelas cidades de Pernambuco, trazendo e promovendo cultura para o público das ruas. Um espaço de resistência. Ponto para o festival.
Enquanto a Céu lotava o casarão por onde se apresentavam as atrações principais do festival, o rapper PRK, do bairro-favela Bela Vista, botou o dedo na cara ao disparar versos de protesto, com letras politizadas e discurso afiado, que oscilavam entre o peso dos Racionais e a beleza do Projota. Foda.
Mas quem ganhou a noite mesmo foi o DJ Cleyton Rasta, autor do hit do youtube “Fogo Na Babilônia” e do viral “Galinha Lombradinha”. Por mais que tente, nunca vou conseguir descrever a sensação de estar ali. Como em seus videos, Cleiton soltava bases prontas de músicas (suas?) e “cantava” (narrava?) em cima, o tempo todo SUPER concentrado, como se fosse A apresentação de sua vida. Senti orgulho, graça, deslumbre, ignorância, compaixão, felicidade… E dancei. E ri. Como se baila na tribo.
Em um determinado momento, me dei que conta que na mesma hora que a Céu tocava numa pista e o PRK metralhava versos agressivos na outra, uma batalha de Vogue Dance com drags e dançarinxs de Minas Gerais e Recife. Amor, cidadania e respeito. Uma aula de curadoria, espírito do tempo e personalidade. As filas e problemas de produção pareceram pequenos.
No Ar: Coquetel Molotov foi um destes eventos que me reforçou a certeza do propósito pelo qual decidimos criar o Projeto Pulso. Descobrir, trocar e apresentar festivais incríveis para outros apaixonados por festivais como nós. Torcemos por um Brasil com mais Coquetéis, Bananadas, Vaca Amarelas, Mecas, Psicodálias, Madas e Morrostocks.
Isso é só o começo.
ps: uma salva de palmas também para o design e comunicação visual do festival, psicodélica e brisadas, como suas apresentações.