Quando você vai a um festival, espera assistir a seus artistas favoritos, ver amigos, beber muito e voltar para casa com memórias incríveis. Ao pesquisar sobre o Mutek antes de ir, percebi que minha experiência poderia ser um pouco diferente da esperada, e isso me encheu de ansiedade.
De fato, mais do que um festival o Mutek é um espaço voltado à criatividade futurista, apresentando detalhes que todos os envolvidos com festivais, música eletrônica e performance vão se amarrar em curtir.
MUTEK é uma organização sem fins lucrativos dedicada à disseminação e desenvolvimento da criatividade digital em som, música e arte audiovisual.
O objetivo é fornecer uma plataforma para os artistas mais originais e visionários que trabalham em diversos campos, proporcionando descobertas para o público. O evento teve início em Montreal (Canadá) no ano 2000 e já apresentou edições em Dubai, Barcelona, Cidade do México e Tóquio.
Edições menores do Mutek já haviam rolado em Buenos Aires, de acordo com o big boss Alain Mongeau “mas nunca assim na versão completa, 2.0”. Ouvindo isso logo na première do evento, me preparei bastante para os 3 dias que seguiriam: sexta (22), sábado (23) e domingo (24/09).
A experiência foi intensa, e busquei selecionar alguns pontos que me chamaram atenção no evento, esperando fazer jus a este gigante moderníssimo que atraiu mais de 8.000 pessoas aos seus espaços para apreciar arte digital e se divertir, de graça.
Dividir para multiplicar
Quando solicitei meu credenciamento, o assessor me respondeu perguntando sobre as plataformas exclusivas que gostaria de acompanhar. Estranhei, e não por menos: quando estamos num festival a vontade é curtir todos os espaços, certo? Pois bem, assim começa a review de um festival pouco usual.
A divisão do Mutek é muito clara em relação ao que você pode esperar de cada sessão: DIGI LAB são workshops e bate-papos, A/VISIONS são programas contemplativos de vídeo, som e arte digital, PLAY são showcases experimentais, NOCTURNE é a parte voltada ao dancefloor e EXPERIENCE é uma festa diurna, que contempla o encerramento do Festival. O interessante de dividir cada plataforma é que você pode focar exatamente no que deseja ver: seja arte, seja aprendizado ou entretenimento. Todas elas juntas fazem muito sentido.
Obs.: A única atividade paga do evento foi o NOCTURNE no Crobar, que teve no line-up Damian Levensohn (AR), Ernesto Ferreyra (AR), Alejandro Mosso (AR), Seph (AR) Mathew Jonson (CA) e Sonja Moonear (CH). As demais eram gratuitas, sendo que algumas delas eram acessíveis mediante retirada prévia do ingresso.
Arte com (bastante) contexto
Um dos melhores papos que tive durante o festival foi com Fidel Eljuri (EQ), artista visual e designer que se apresentou não menos do que três vezes no Mutek. Primeiro, em projeto solo, realizou uma instalação “Digital Ceremony” no A/VISIONS e depois performou ao lado do amigo Nicola Cruz (EQ).
Sua arte em motion tem personalidade forte e bases folclóricas, porém mais do que explorar suas raízes para entregar experiências ao público, Fidel busca realizar vivencias profundas com as tribos equatorianas como os Shipibo, que vivem na região metropolitana de Quito.
A ligação com a tribo é percebida desde o ritual do fogo, muito presente em toda a linha narrativa da sua obra, e também da decorrência de suas experiências com Ayuhasca na tribo, que se desdobraram na presença de fractais multicoloridos.
Como autêntico Sul-americano, a visão de Fidel foge das representações da arte tribal feitas pelo homem branco explorador, que geralmente remetem ao passado, numa presunção de que apenas o homem branco e sua cultura são capazes de evoluir.
Fidel busca “utilizar novos meios para aumentar a conscientização sobre estes povos que existem até hoje, mostrar o que aprendo sobre sua cultura e identidade que estão em evolução constante” – assim expressa o chamado Neo Ritual Andino, embalado pela música de Nicola. Fuerte!
Dê pras minas o espaço que elas merecem
Foi sensacional ver a curadoria apostando em mulheres que não têm medo de mostrar seu olhar feminino. A participação delas no Mutek começa pela musa Maya Jane Coles (UK), que tocou diversas tracks do seu novo álbum Take Flight.
Ela havia levado toda a parte audiovisual para acompanhar o set, desenhada pela própria (!) – porém, como e, toda apresentação, o set de Maya foi acompanhado de um VJ, neste caso, uma talentosa VJ argentina, Nata Failde.
E o talento das minas argentinas para AV não para por aí: Rox Vázquez e Carolina Carballo foram outras VJs incríveis que conheci no Mutek.
Usando cores trendy e imagens com apelo super feminino, cheias de plantas, flores e cristais, mostraram que criatividade digital não precisa ser sinônimo de máquinas preateadas e circuitos.
Tem espaço pra candy color, SIM! No NOCTURNE tive a chance de assistir ao set da Sonja Moonear (CH) mas depois do passeio seguro de um Mathew Jonson (CA) inspirado, não sobrou muito para ser feito. O horário (4h30AM) e a pista demandavam um som muito intenso, que ela entregou, “pero” não muito à vontade.
Nata Failde: http://cargocollective.com/natafailde
Carolina Carballo: https://www.behance.net/CarolinaCarballo
Festival nem sempre é playground de adulto, e tá tudo bem!
Festival sem cerveja é festival? Foi a primeira coisa que pensei ao chegar, e já entendi tudo ao entrar na espetacular Sala Sinfónica do CCK para assistir a uma das melhores apresentações do festival, da dupla NONOTAK (FR/JA) composta por um arquiteto e uma ilustradora que derma novo significado aos já conhecidos elementos das pistas: som e luz. Naquele espaço, impossível ter 700 pessoas com cerveja nas mãos e na cabeça.
Quando você está em um festival artístico como o Mutek, compreende que as regras são um pouco diferentes, e o poder passa do público para o artista que foi convidado a expor. Quer um exemplo? Perdi um dos acts que mais me interessava, Michela Pelusio & Grenn Vervliet (IT/BE) porque cheguei 18h36 na entrada do auditório: seis minutos de atraso.
Nem fitinha de imprensa me ajudou, e eu entendi na hora que a responsabilidade do festival é para com o seu convidado, numa relação de curador/artista onde o público entra apenas como espectador.
Como plataforma de expressão e exploração, o Mutek talvez seja o único festival que pode incrível sem chopp 500ml. Ativação de marca também não teve. Então como se sustenta a vinda de mais de 70 artistas e planilha de produção sem patrocínio e com a entrada grátis? Essa é a pergunta que nos faz passar para o próximo item:
Parceria público-privada pode funcionar SIM!
Quando o foco é propagar cultura e conhecimento, é difícil esperar que uma marca vá pagar a conta. Por isso foi fundamental a parceria do organizador do Mutek Argentina, Gonzalo Solimano, com os órgãos culturais da cidade de Buenos Aires.
Quando você entra em um prédio imponente como o CCK e percebe que tem um festival para explorar gratuitamente, parece mentira. Mas não: é apenas o resultado de um edital público aplicado à concretização de um evento cultural. E o público correspondeu: teve interesse do começo ao fim, encheu as salas e aplaudiu muito.
Os aparelhos de cultura da municipalidade (Centro Cultural Kirchner e Centro Metropolitano de Diseño) foram atrações à parte. Em troca, a plataforma internacional deu espaço a dúzias de artistas locais que tiveram seu trabalho reconhecido pela primeira vez, por pessoas como… euzinha! Imagina no Brasil? É por isso que:
O papel da curadoria é apresentar novidade…
… e também dar espaço aos artistas locais. Através desta responsabilidade mútua e verba garantida, a pressão de vender ingressos ou se bancar com patrocínio diminui consideravelmente, aumentando as oportunidades de arriscar e mostrar algo realmente distinto, feito por artistas inovadores.
Essa foi a grande lição do #MUTEKAR para mim. Aproveito pra me despedir dando mais dicas do que vi e ouvi:
Chancha via Circuito
Banda meio LIVE de cumbia super atual, fez o festival todo dançar muito. Visuais incríveis!
Instalações Visuais
Fazem você olhar pra cima, para os lados, prendem sua atenção e, especialmente, sempre utilizam formas e ideias muito simples para criar experiências sensoriais inovadoras. Nota 10! Na foto, abertura com som de Ducasse & Borini (AR)
Chic Miniature
Live composto pelo Guillaume & The Coutu Dumonts (CA) e o Ernesto Ferreyra (AR), tem muito groove e uma pegada bem house, o que diferencia de outros lives.
KLAUS
Se a sua ideia de Inteligência Artificial sempre esbarra na questão sentimental, pode começar a rezar: esse cara deu voz às máquinas e extrai sentimentos lindos delas. Ernesto Romeo (AR) é um mago dos modulares e se apresenta com uma banda completa, o KLAUS. Tem disco deles no YouTube, procura lá!
Paraíso dos criativos musicais
Não manjo nada de produção musical, mas acredito que este festival seja o parque de diversão dos ratos de estúdio. Tem diversos workshops apoiados por todas as marcas de sintetizadores, portanto deve valer muito a pena para quem se interessa!