Review: Levitation – Guia dos Dançarinos das Galáxias


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Da minha parte, já havia um flerte com o Levitation há uns 3 anos, quando ele ainda se chamava Austin Psych Fest.

A qualidade da programação, sempre mega sintonizada com o que reverbera de mais expressivo na música psicodélica deste planeta, abrangendo este espectro de cabo a rabo, me deixava encucado e curioso.

Em busca de uma experiência com amplitude mais definida e incentivado por um line-up que prometia nomes como Brian Jonestown Massacre, Brian Wilson (cantando o Pet Sounds), Ty Segall, Nicolas Jaar, Caribou, Lee “Scratch” Perry, Flying Lotus, dentre outros tantos, resolvi ainda em abril comprar uma passagem de última hora e embarcar nessa aventura imprevisível e vibrante que compartilho neste relato.

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O baque veio mais cedo do que eu nunca poderia imaginar. Estava na fila de embarque para Houston, minha conexão nos EUA, há menos de 18 horas do início do festival, quando recebo uma mensagem do caríssimo Fernando Almeida Filho (aka Dinho, do Boogarins) avisando que o Levitation havia sido… cancelado!

A fila do embarque permanecia grande e nesse pequeno tempo extra a tonteira só aumentou: todas as informações disponíveis online ainda eram muito rasas e vagas (site do festival para variar offline), o que ia construindo uma bad trip química de ansiedade e insegurança em meu corpo. Liguei para minha amada em busca de sobriedade e uma visão pé no chão para confirmar o que já martelava minha mente: a vibe estava lá e, independente da forma, grid ou embalagem, o desafio da vez seria encontra-la (e até mesmo caçá-la).

14h de desconexão se passaram até que as informações se delinearam um pouco melhor. Antes de subir no avião para Austin, fiquei sabendo que o camping (onde ficaria hospedado) também havia sido bloqueado e que existia previsão de uma grande tempestade a caminho para o final de semana, motivo que forçou a organização a tomar essa drástica decisão, pressionada, é claro, pelas autoridades locais. Fiquei sabendo também que havia esforços para distribuir alguns dos artistas que tinham chegado na cidade (e que também haviam sido pegos de surpresa) por algumas casas da região… Era a fagulha que precisava. Ainda de longe recebi ajuda de minha companheira que descolou vaga num hotelzinho confortável em meio a um cenário que contava com milhares de “desabrigados” em disputa por opções baratas para de alguma maneira seguirem a jornada e contornar um pouco a decepção que pulsava no horizonte.

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Mal deu tempo para sair do banho para que a segunda porrada chegasse. Alguém da produção teve a infeliz ideia de oferecer online ingressos dos shows dos headliners em casas de pequeno porte por módicos $5! Tipo isso: você está na sua cidade navegando na internet querendo zoar os amigos que estavam chateados por terem cancelado a ida naquele festival que você não ia porque estava quebrado e,de repente, aparece na sua timeline um show do Animal Collective do lado da sua casa… Por menos de R$20! É lógico que a presepada derrubou mais uma vez o site do ar, com os ingressos se esgotando em menos de 10 minutos.

Dinho mandou uma nova mensagem dizendo que eles tinham uma gig no Empire e tudo o que podia dizer é que o Dungen também ia tocar lá e que ele ia dar um jeito de ajudar. Juntei minhas coisas e antes dei uma passada no The Scott In, onde seria o show do Brian Jonestown Massacre.

Chegando lá, me deparei com almas perdidas de vários cantos do mundo: franceses, ingleses e até australianos também estavam atordoados e putos com a pataquada que passava na frente de nossos olhos… Tudo esgotado, ninguém ligado ao Levitation para passar informações, galera da casa não tinha nada ver com isso e só sabia informar que apenas iria entrar quem tivesse o tal do ticket emitido online.

Antes de chegar no destino da noite já dava para ver uma fila gigante, que dobrava a esquina, para entrar num local que deveria caber menos que 1000 pessoas. Quando eu me aproximava para me aventurar nela, vi Benke (aka guitarrista do Boogarins) saindo pela porta cruzando atrás de um rango: foi o match que precisava! Algumas palavras depois e já estava junto de toda trupe brasileira que traçava um mexicano do outro lado da rua. Foi muito legal ver nossos heróis sendo reconhecidos pela galera que ia passando, sempre lidando de maneira simpática e aberta com estranhos dos mais diversos tipos que também se identificavam com a sonoridade do quarteto.

Round 1: Fogo com pedras

Dentro do Empire Control Room, um club que contava com área externa simpática, haveriam 9 shows do festival naquela noite.

Experiência começou com o Purson, banda inglesa com uma pegada classic-rock-witch-setentista que fez um bom show encorpado pela presença de sua front woman, Rosalie Cunningham. Aos poucos, “la onda” ia mostrando suas asinhas em meio a um público ainda atordoado pela velocidade com que tudo ia se desenhando.

Yeah! A atração seguinte não poderia ser mais indicada: Boogarins subiu no palco externo por volta das 20h para inundar os presentes com uma good vibe oceânica, abrindo janelas e confirmado algo que muitos estavam esperando… Hora de espremer os limões pois uma bela de uma limonada surgia no horizonte!

Área externa Empire Room. Crédito: The Miguelitos.
Área externa Empire Room. Crédito: The Miguelitos.

Não consigo resgatar se foram 4 ou 5 músicas em toda apresentação, a impressão é de que foram poucas. O que ficou foi a memória de uma progressão hipnótica que ia encorpando e preenchendo a casa a cada compasso, aproximando público sedento por um banho lisérgico iluminado.

Boogarins. Crédito: The Miguelitos
Boogarins. Créditos: The Miguelitos

Mal deu para recuperar o estômago e foi vez de segurar os dentes novamente para a apresentação dos Dungen, suecos que conheci por conta do álbum Allas Sak, lançado pelo selo Mexican Summer. A dificuldade que eu tinha com os vocais dos caras logo foi superada pelo rock-progressivo-montanha-russa calcado em teclados e flautinhas que construíam riffs arrebatadores em meio a quebras de temperatura elegantes.

O jogo estava de volta e foi dando o que a turma precisava na apresentação da turma do Imarhan. Os argelinos apresentaram um mix folk-percursivo-messiânico bem acalorado que fez a mulherada se soltar e dançar com o que tínhamos de ritual world music para a noite.

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Imarhan. Créditos: The Miguelitos.

Uncle Acid & The Deadbeats fez o que para muitos foi o show mais esperado da noite. Stoner rock ensanguentado que rasgou o palco entregando pressão sonora fantasmagórica, envolta nas projeções lisérgicas numa pegada vintage-old-school-2000-light-years-from-home que marcam a personalidade do festival.

Noite se encerrou com a turma queer grooveada do Foot Patrol, que prestou um competente e ultra rebolante tributo ao Prince.

Show Uncle Acid & The Deadbeats. Créditos: The Miguelitos.
Uncle Acid & The Deadbeats. Créditos: The Miguelitos.

Round 2: Tem um pouco de sol em minha sopa

Curioso e impressionante a dinâmica com que a cena local ia se portando diante dos acontecimentos. Enquanto uns (poucos) insistiam em choramingar o leite derramado, outros tantos iam se mobilizando, não só para criar e divulgar opções para as pessoas que estavam na cidade por conta do festival, mas também no sentido de amparar aqueles que porventura estivessem passando dificuldades com hospedagem, locomoção ou falta de informação.

Ótimos exemplos foram a comunidade online Gallavanteer e o feed não oficial do twitter @psychfestshows, que iam mapeando a onda fluindo pela cidade.

Aproveitei para me agilizar e salvar o meu dia: após algumas tentativas tive oportunidade de explicar meu caso para organização do Levitation, que me garantiu acessos aos shows teoricamente “sold out” que aconteceriam no pub Barracuda. O lugar ficava de frente para o local onde passei a noite anterior e, como eram apenas 13h, a fila tímida e travada só garantia acesso a quem estava com nome na lista ou tinha comprado o tal do ticket online, o que continuava causando grandes desconfortos. Ainda esperando minha vez, pude escutar parte do Blondi’s Salvation que fazia um competente show folk-rock-medieval-orgânico capaz de botar elfos para conversar com bruxos.

Mild High Club. Créditos: The Miguelitos.
Mild High Club. Créditos: The Miguelitos.

Segundo show era do Mild High Club que terá seu trabalho lançado no Brasil pelo ótimo selo indie Balaclava. O jovem compositor Alex Brettin e sua presença “abobalhada” e simpática junto de um time de excelentes músicos entregam um show original, simples e emocionante, recheado de riffs e melodias marcantes que denotam um profundo conhecimento da música pop dos anos 70 e 80. Tá tudo lá: Mac deMarco, John Lennon, Real Estate, Ariel Pink, Stevie Wonder… Corre e escuta o álbum Timeline que é bem provável que eles visitem o país ainda este ano.

 

La Luz, Crédito: The Miguelitos.
La Luz, Crédito: The Miguelitos.

Ainda dentro do pub pude ver um dos shows que estava mais aguardando, o das meninas do La Luz que, em 2015, lançaram o disco Weirdo Shrine, um dos mais tocados aqui em casa. Apresentação é uma bela síntese do que há de mais emblemático no universo girl-power-surf-rocker-tatuado-tarantino, apesar de que senti falta de um pouco de punch para deixar a experiência com um que mais energético.

A casa ia enchendo e a cada intervalo a área externa, que tinha um palquinho ensolarado clamando por um pouco de vida, ia mostrando seu charme. Até que alguém teve a ótima ideia de flexibilizar o que estava programado e levar as 3 últimas apresentações do dia para lá. Fez a diferença! Abriu espaço para ainda mais pessoas entrarem num momento onde era certo que nenhuma chuva atrapalharia nossa felicidade.

Barracuda. Crédito: The Miguelitos.
Barracuda. Crédito: The Miguelitos.

Primeiro show nesse “novo” contexto foi o do quarteto Delicate Steve, com um pop-instrumental-big-stage-style de quem já fez turnê com o Tame Impala. Não é muito minha praia, mas teve o seu valor.  Depois, o Ultimate Paiting esbanjou maturidade e perfeição tocando quase que na íntegra o excelente disco Green Lanes.

Ultimate Painting. Crédito: The Miguelitos.
Ultimate Painting. Crédito: The Miguelitos.

Temperatura ia subindo para as duas apresentações finais da tarde.

The Murlocs foi ao palco para firmar seu lugar como uma das melhores performances do final de semana. Os australianos, que lançaram em março o ótimo Young Blindness, mostram uma divertida salada juvenil de garage, blues e psych-rock, com timbres nervosos de guitarra que nos fazem querer arrancar as orelhas na esperança de que fiquem ecoando ad aeternum.

Ainda assim, apoteose do dia ficou com o show da atração mais esperada por parte do público: King Gizzard & The Lizzard Wizard, em tour de lançamento do novo álbum Nanagon Infinity. Rock’n’roll-locomotivo em estado puro, vísceras, batalha de crowd surfing, catarse coletiva de uma maneira que ainda não tinha vivenciado.

Eram 20h e ainda sobrava um pouco de fôlego. Foi o bastante para conseguir cruzar um par de quadras até o The Townsend, onde também estavam acontecendo shows que faziam parte da programação oficial do Levitation.

A pegada “clubinho da realeza” que rolava por lá (num sentido positivo) me exibiu mais sobre as faces da “Reverberation Appreciation Society”, uma organização que constrói pontes entre diversos momentos de existências perpétuas, célebres por desenvolver a cultura psicodélica de uma maneira produtiva, original e verdadeira. É como se tivesse sido automaticamente ejetado desse século e acessado um portal atemporal para um templo fértil e inesgotável de tons, timbres, melodias.

Curti ainda timidamente o show do The Turns, grupo de Los Angeles que tocava um pop lisérgico anestesiante, onde atmosfera 60’s flertava com moods melancólico, onírico e classudo.

Era o bastante para uma noite onde fechei com show do lendário Joe King Carrasco, vovô que movimentou a turma da velha guarda (me refiro a uma galera que deve ter literalmente curtido muito nos anos 50s) para uma aula de vitalidade, bom humor e estilo com o que os locais chamam de “Tex-Mex Rock’n’Roll” ou tequila reggae (tipo um rockabilly-surf-rocker temperado por ritmos latinos).

Crédito: Steve Danyleyko.
Crédito: Steve Danyleyko.

Round 3: Hasta la vista, cabrón?

Último dia e Barracuda era o destino novamente. Dessa vez, programação se intercalaria o tempo inteiro entre a área interna e externa do pub e estava turbinada com 18 shows de bandas independentes que alimentam um fértil circuito underground norte-americano. Cenário já era completamente diferente do dia anterior: staff facilitando a entrada de quem queria entrar mas não tinha comprado ingressos online e um volume considerável de público curtindo os shows logo cedo. Ah, e o sol continuava brilhando. Nem um sinal de mal tempo em Austin…

Crédito: Jackie Lee Young.
Crédito: Jackie Lee Young.

Primeiro show da tarde foi o The Asteroid no. 4, banda de São Francisco que apresentou um classic-rock-70s que, diga-se de passagem, não me inspirou muito. Depois deles foi a vez do Levitation Room entregar ainda cedo um bom show do excelente disco Ethos, num combo muito simpático que desfilou seu pop-garage-flower-power. Era legal de ver o cenário preenchido com outras peças: ares de festival sopravam um público mais solto, customizado e maduro. Rapazes do Cellar Doors entregaram som diferente do visual florido que portavam: post-punk elegante à la Interpol alimentava turbinas de quem pretendia voar mas ainda procurava por ar…

Cellar Doors. Crédito: The Miguelitos.
Cellar Doors. Crédito: The Miguelitos.

Aí, meu santo foi puxado pelos cabelos para área externa onde rolava o show do impronunciável JJUUJJUU e sua catarse drone arrepiante. O vocalista se portava como um xamã viking convocando a good vibe em meio a uma grande tempestade interplanetária noise, que ia abrindo janelas do além para seres de outras galáxias virem fazer parte desta “gota” de aventura.

Experiência fluía como bolhas de sabão se espalhando levemente por uma tarde despretensiosa, que explodiram no show do The Rotten Mangos, banda de jovens locais que mergulhou plateia num psych-surf-texano de encher os olhos.

Show JJUUJJUU. Crédito: The Miguelitos.
JJUUJJUU. Crédito: The Miguelitos.

A noite chegava e aos poucos a parte visual mostrava suas asinhas: arandelas acendiam e as projeções lo-fi-style iam sendo montadas para garantir um espetáculo de despedida. Aterrissamos novamente com os shows do Mild High Club e do Delicate Steve, ambos se apresentando numa pegada mais torta, dark e profunda do que as mostradas nos shows do dia anterior.

Crédito: Jackie Lee Young.
Crédito: Jackie Lee Young.

Olhos de todos iam se arregalando para o bloco frenesi que atropelou a noite. The Murlocs botou a meninada para pular e desejar, com mais um show explosivo do tipo que celebra aqueles momentos da juventude sempre pulsantes em nossas vidas, que marcaram de maneira definitiva no inconsciente coletivo a verdade e o poder rock’n’roll.

Em seguida, o Holy Wave, também original de Austin, botou geral para levitar num clima verão cristalino Stand By Me (lembrar não somente a música, mas principalmente do filme), estendendo a estamina e os sorrisos da turma para uma noite que parecia tímida, mas ia se mostrando interestrelar.

Será que o King Gizzard & The Lizzard Wizzard também conseguiria se superar? A enorme expectativa se concretizou num daqueles momentos atômicos únicos que acontecem de vez em nunca em nossas vidas: caos grupal ensandecido e totalmente fora de controle que tatuou as almas dos que estavam lá!

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Incêndio deixou de pé as paredes e alguns corpos… Já se passava das 2h da manhã e os californianos do Mystic Braves iam juntando o que sobrou do público e dos artistas para festejar rumo a um encerramento fabuloso, que comprovava aos sobreviventes que, independente das formas e horizontes, o universo ainda nos permite literalmente levitar nessa nossa realidade cada vez mais incerta, absurda e aleatória.

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