Você provavelmente já ouviu falar no Afropunk. Você provavelmente está sabendo que esse movimento está desembarcando no Brasil, realizando a sua primeira ação nos dia 19 e 20 de Novembro na cidade de São Paulo junto com a Feira Preta, né? Mas, além de saber que as pessoas mais lindas e estilosas do mundo se reúnem nesse festival, você conhece a história do Afropunk?
Continue lendo para conhecer mais sobre esse movimento de grande impacto cultural no mundo todo.
Como começou a história do Afropunk
Tudo começou com um jovem punk, bi-racial, nascido em uma pequena cidade da Califórnia predominantemente povoada por pessoas brancas. James Spooner se mudou para Manhattan para cursar o ensino médio e lá se encontrou na cena underground de punk rock e hardcore.
Começou então a trabalhar como promoter de shows, DJ e escultor em Nova York. Com seus 20 e poucos anos, James começa a viver uma crise identitária, ser um dos poucos negros que ele conhece dentro da cena punk. Logo ele percebe que as questões que lhe afligiam também representavam a realidade de outros negros e assim surge o documentário independente Afro-punk, lançado ao mundo no ano de 2003.
Afro-Punk: O Filme
O documentário de uma hora pode ser achado na internet. É bem simples em formato, no melhor estilo faça você mesmo punk. Mais do que um registro das bandas de punk negro, o filme traça uma espécie de manifesto que retrata a constelação de uma cena, expõe suas contradições e de certa forma aponta uma proposta de futuro.
Spooner nunca tinha filmado antes. Com uma câmera na mão e uma ideia na cabeça, decide sair pelos EUA entrevistando sua rede de amigos sobre o sentimento de alienação dupla que compartilhavam. Ser uma minoria em uma subcultura, que apesar de construída de forma aparentemente de maior liberdade que o mainstream, guardava a característica estruturante de ser predominantemente formada e identitariamente associada a pessoas brancas. Ainda que o rock tenha sido inventado por pessoas negras, ainda que existam bandas de punk negras importantes.
O filme acompanha a trajetória de 4 personagens e entrevista cerca de 70 outros entre músicos, fãs, produtores de eventos, DJs, criadores de zines, etc… A maioria são integrantes de bandas locais de punk, metal e hardcore, “artistas pobres e quebrados” nas palavras de um entrevistado. Com algumas exceções como o Walter Kibby vocalista do Fishbone e D.H. Peligro baterista do Dead Kenedys e Red Hot Chili Peppers.
As falas abordam temas identitários políticos como a solidão do homem e da mulher negra no meio da cena do punk, o estranhamento estético das pessoas punks pela comunidade negra, racismo, herança escravagista, privilégio branco e a vontade coletiva dos afropunks de se unirem.
O filme explicita que as dores e desconfortos de não pertencimento e de falta representatividade das pessoas negras dentro da cena do hardcore. É um sentimento compartilhado, portanto, mais que identitário a um nível subjetivo, está colocada uma questão social. E por fim ele projeta um sonho futuro onde essa questão social não mais exista. Onde a comunidade afropunk possa se unir e se representar.
AfroPunk: O começo do Festival
James passou dois anos exibindo o seu filme-manifesto pelos EUA, recebendo um retorno intenso de um público crescente. Em um tempo que o Facebook ainda era uma experiência restrita às universidades, Spooner transformou o website oficial do filme em um fórum de conversas que conectava afropunks de várias partes do país.
Uma das pessoas conquistadas pela identificação com o filme foi o inglês, descendente de indianos e judeus, Matthew Morgan. No começo dos anos 2000 ele tinha se mudado para os EUA buscando seguir trabalhando na indústria musical. Tendo trabalhado com gerenciamento de artistas por 15 anos em Londres, Morgan buscava em Nova Iorque romper as caixas que encontrara na Inglaterra para o seguimento de artistas negros. Além de atuar com o gerenciamento de alguns artistas na América, Matthew se tornou produtor associado do filme Afro-Punk.
Em 2005 Spooner e Morgan se juntaram, para realizar um mini festival na ocasião da 100a exibição do filme. O festival “Liberation Sessions” durou um fim de semana e ocupou lugares icônicos para o Punk e para a comunidade negra como a Brooklyn Academy of Music (BAM) e o CBGB. Reunindo, segundo os organizadores, em torno de 2.500 pessoas para assistir a seleção de filmes, os shows e a apresentação de DJs de House.
O objetivo central de Spooner com o festival era reunir ao vivo aquela comunidade que se organizava a partir do fórum. Sem dinheiro para trazer grandes bandas da cena punk negra para o line up, o festival focava na reunião da comunidade: o que acontecia na plateia era mais importante do que o que se passava no palco. Nas palavras de Spooner: “As bandas são uma desculpa para a cena se juntar. Elas são secundárias em relação ao público, o que é diferente de ir a outro tipo de show”.
Os anos foram passando, a marca ganhando notoriedade e o público aumentando. Afropunk se tornava cada vez menos DIY e cada vez mais Business. Chegaram os patrocinadores, as almejadas bandas grandes (como: Bad Brains e Bloc Party) e o festival passou a comportar junto com os filmes e a música uma grande pista de skate. Em 2008 Spooner decidiu sair de cena. Hoje, mora em Los Angeles, se dedica a criar novelas gráficas (@SpoonersNoFun) e a vida de tatuador (@monocletattoo), que utiliza apenas tintas veganas.
AfroPunk: O festival cresce
Tendo Spooner saído de cena. Entra, para dar segmento a história do festival, a poderosa veterana da indústria musical estadunidense, Jocelyn Cooper. Ex-gerente de A&R da Universal, responsável por descobrir o pioneiro do neo-soul D’Angelo e por assinar o rapper Nelly e seu selo Cash Money.
Cooper passa a assumir a frente dos patrocínios e da estratégia, enquanto Morgan ocupa a posição de showrunner (algo como produtor executivo no Brasil, mas com características específicas). O festival passa então a ser “tudo aquilo que o público quiser”. E vê o seu público crescer de forma exponencial.
Hoje só na edição do Brooklyn são reunidas 75 mil pessoas ao longo de três dias. São combinadas as bandas locais, nomes notórios da música e das artes como Janelle Monáe, Lauryn Hill, Saul Williams e Kanye West.
Como acontece com qualquer movimento que começa underground e se torna de proporções mainstream, muitas pessoas questionam os rumos que o Afropunk tomou com a direção de Morgan e Cooper. Mesmo Spooner reconhece que o sentimento inicial de comunidade, baseada em um fórum, onde o público era formado basicamente pelas bandas que se apresentariam em algum momento e sua rede de amigos, vai sendo perdido no festival.
Em meio às críticas locais, Jocelyn e Matthew conseguem manter o festival em constante expansão se tornando uma enorme plataforma global. Atualmente as suas redes sociais são o principal destino digital sobre cultura negra do mundo, mobilizando 14 milhões de pessoas por semana.
As ações do festival hoje mesclam shows, apresentações musicais, intervenções poéticas, performances, debates e programação educativa (solutions sessions), feira de empreendedores negras e negros, mostras de filmes, além de conseguir reconhecidamente influenciar as tendências estéticas globais, valorizando a imagem do negro contemporâneo.
Se alguns afropunks originais, que já começam a ficar com seus cabelos grisalhos, torcem o nariz, a juventude sem dúvida abraça a expansão do afropunk.
A história do Afropunk agora conquista o mundo
Em 2015 Morgan falava em entrevista ao jornal britânico The Guardian que estava em um constante processo de descobrir e se apaixonar pelas comunidades negras. Ele tinha primeiramente ficado muito impressionado ao sair da inglaterra e chegar nos Estados Unidos onde 35 milhões de pessoas eram negras. Mas, naquele ano ele já não parava de pensar, segundo ele, no tamanho da comunidade negra brasileira, 100 milhões de pessoas.
O namoro do festival começa pelo lineup e pelas parcerias que foi abrindo espaços para a participação de artistas e marcas brasileiros como Batekoo, Black Pantera e Beleza Natural. Passou por anunciar inicialmente uma edição em Salvador em 2020, mas surpreendeu todos ao anunciar que ainda esse ano realizará dois dias de shows na Audio em São Paulo junto a Feira Preta. Segundo os organizadores a comunidade brasileira representa uma parcela significativa de acesso ao site e as redes sociais.
Ao chegar ao Brasil, esse ano, o Afropunk passa a realizar ações em 4 continentes. No ano de 2015 foi a primeira vez que o festival atravessou os mares em direção a Europa. Ali nascia o Afropunk Paris. Em paralelo no mesmo ano o Festival expandia suas ações dentro dos estados unidos para outra cidade com grande população negra, Atlanta. No ano de 2016 o Festival chegou em Londres. Em 2017 é a vez do Afropunk retornar a raiz que tenta evocar no seu princípio e realizar sua primeira edição no continente africano, na cidade de Joanesburgo, na África do Sul.
Além desses 5 locais, que o Brasil passa a se somar, onde edições do Festival são realizados anualmente, a plataforma realiza ativações pontuais em outras partes do planeta. Como por exemplo o Afropunk: take over Dakar, produzido por Ami Weickaane em parceria com Morgan e Cooper. Ami, que estava no Rio de Janeiro no mês de Outubro, veio espalhar a palavra do festival durante a Festa Literárias das Periferias (FLUP). Falou para um público de quase mil pessoas em sua maioria negras e mulheres sobre a importância de criar espaços seguros para os negros se expressarem criativamente com liberdade. E foi ovacionada de pé ao lado da ativista do Black Lives Matter, Fumnilola Fagbamila.
O Afropunk é uma plataforma completamente ligada às pautas ativistas e os movimentos sociais negros contemporâneos. Atuando na mobilização e divulgação das pautas sociais, como já falamos nesse post.
Hoje, 16 anos depois do lançamento do filme, a história do Afropunk representa uma gigantesca plataforma de conteúdo, um festival com edições em 5 lugares do mundo (6 em breve), um movimento estético poderoso, uma agência de marketing e um portal de mobilização social. Se a luta inicial era demonstrar que punks negros existiam e conectá-los, hoje Jocelyn e Matthew representam um grande poder na disputa da imagem associada ao negro na mídia. Superando uma imagem estereotipada e restritiva. Colocando o mundo para contemplar a riqueza da diversidade de experiência e sabores presentes na comunidade negra global.
Afropunk reinventa a contracultura e está mudando o mundo!