Ontem contei aqui no Pulso o início dessa aventura chamada Glastonbury. Hoje a história continua…
Chegamos um pouco atrasados para a apresentação que começou pontualmente as 21h30 no palco externo Genosys do Block 9. Por termos acesso ao staff, sabíamos que havia uma certa ansiedade envolvida na apresentação do Cerrone, tido como grande headliner do stage. Ninguém sabia dizer ao certo se seria um show, live PA, DJ set ou um misto disso tudo e pelo que entendemos as conversas com ele não era das mais simpáticas.
Um grupo considerável se aglomerava para balançar ouvindo set explosivo e contagiante que mesclava de maneira perfeita disco e house music. Fomos chegando pelas beiradas e, como o volume estava visivelmente sendo contido, buscamos uma aproximação maior com a primeira fileira, literalmente ao lado de onde Cerrone discotecava. A animação de parte do público, assim como a minha, foi diminuindo ao passo que percebemos que as sequências estavam perfeitas demais para um tiozinho que pulava demais, dava tchauzinhos demais e apertava botões de menos… Valeu pelo contexto histórico/educativo da atração, que desfilou hits atemporais de sua carreira.
Como quinta ainda era considerado um momento pré-festival, aproveitamos para no resto da noite nos perdermos de maneira aleatória pelos cenários que nos cativaram durante o dia. Melhor escolha impossível! Adentramos uma tenda de circo simpática montada no Green Fields onde uma platéia não muito numerosa cheia de pessoas do leste europeu aguardava pelo início do show do Dagamba. A surpresa foi ótima: banda original da Latvia reinterpretava clássicos da cultura pop através de música clássica avançada e muitas vezes gutural. Apresentação de alto nível nada ortodoxa e com alto teor de humor mostrou que nos próximos dias haveriam muitos tesouros não mapeados soltos pelas programações não abastadas dos palcos menores.
Saímos com um grande sorriso no rosto e não foi preciso ir muito longe para dar continuidade a magia: literalmente cruzamos a rua em direção a outra pequena tenda de circo, onde funcionava um misto de pub turco com cabaré. Quem estava no palco era a Gypsydelica com seu misto de psy-rock-esfumaçado dos balkans, onde tivemos oportunidade de vivenciar um dos melhores pequenos shows que assistimos nos últimos 3 anos. Pouco mais de 30 pessoas participavam do que parecia ser uma passagem dos melhores filmes do Emir Kusturica: ciganada em êxtase mergulhava nas improvisações intermináveis e cheias de fôlego, psicodelia fervendo de maneira tátil no ar, muita alegria e chamados proféticos do além-mar. Felizmente ao final descobrimos que teríamos outra oportunidade para vê-los novamente ao final do festival.
Missão para uma noite “morna” estava quase no final. Antes de nos jogarmos nos braços de Morfeu, nos dirigimos para o Silver Hayes em busca de dose extra de animação. No palco aberto The Blues estava rolando uma festa da Circoloco e Jamie Jones tinha acabado de assumir o som… Do outro lado, dentro de uma tenda gigantesca, Jackmaster, Eats Everything Skream e Seth Troxler com seu coletivo J.E.S.u.S. faziam o chão tremer. No entanto, choque térmico entre apresentações calorosas que tínhamos acabado de vivenciar e imersão no principado raver bombado de MDMA não foi nada digesta, fato potencializado pelo baixo volume dos PA’s, principalmente da área externa. Não duramos nem 20min e optamos por voltar ao conforto de nossa linda barraca.
Let’s get this party started right
Sexta 27/07 surgiu com uma notícia que me parecia aterrorizadora: previsão de chuva no radar. Ou seja, todo esse nosso conto de fadas que mostrava um Glastonbury bonitinho e simpático iria sofrer um baque que poderia transformar a experiência num grande caos de lama. Antes de cair de cabeça na programação coube uma passada no Sacred Space, um grande campo aberto onde havia uma réplica do Stonehenge e um belo jardim budista, para 20min de meditação. Timidamente o sol esboçou um sorriso, o que fez ter fé de que, assim como muitas vezes ocorre aqui na nossa cidade natal, a previsão climática poderia ter cometido um equivoco rotineiro.
O palco era o West Holts, espaço dedicado a apresentações ecléticas que funde em sua programação artistas variados de “world music”, pop, rock, soul e eletrônica onde bateríamos cartão durante vários momentos no festival. O show era do Dorian Concept jovem produtor austríaco que lança seus trabalhos pela Ninja Tune e que cativou nossos ouvidos em 2014 com seu disco “Joined Ends”. O show, muito bem calibrado com adição de um baterista e baixista para acompanhar o piano e as programações eletrônicas, parecia uma fase do Sonic (tempos do Mega Drive) sendo jogada num cenário chill-out de Lewis Carroll. Show de 60 min rendeu aplausos de uma platéia misturada e curiosa, que em grande parte ficou aguardando a próxima apresentação, a do lendário brasileiro Marcos Valle.
É obvio que não perderíamos essa, ainda mais por que nesse momento alguns de seus trabalhos estão super em alta com os DJs de groove espalhados pelo mundo inteiro por conta dos relançamentos feitos via Far Out Recordings. O show, escoltado por uma competente banda de apoio, seguiu pegada “best of” passando por vários momentos (legais e sonolentos) da carreira do simpático compositor. Pesar ficou por conta da chuva, que resolveu mostrar suas asinhas bem na hora que Marcos Valle incorporava seu “santo” bossa nova… Ok, vamos desconsiderar implicância pessoal e cortar a também a correria capa-de-chuva-botas-frio-etc para registrar que parte considerável do público se manteve no local até o final, mesmo que o tempo tenha piorado drasticamente.
Nosso medo foi tranquilizado por um conhecido inglês que pontuou que a chuva não duraria mais que 1h. Foi o tempo necessário para repormos energia e descansarmos matreiramente num quiosque que vendia redes mexicanas (?!). Com a chuva diminuindo, resolvemos preencher a janela livre existente para dar um pulo no Pyramid Stage para conferir o que se tratava o som da Mary J. Blige, sobre o qual vários dos dançarinos do Block 9 comentavam com curiosidade e paixão. Bem, show açucarado e passional, não muito indicado para nossas pernas nem para nossos estômagos naquele momento entortado.
Voltamos ao West Holts, junto com chuva que insistia em testar nossa resistência, para um dos shows que particularmente eu mais esperava, o The Gaslamp Killer Experience. O lendário DJ de Los Angeles iria performar seu último álbum junto do The Heliocentrics, famosos por lançar trabalhos com autoridades do naipe de Mulatu Astatke. O jeito foi esquecer a água, fechar os olhos, segurar os dentes e se soltar na onda psicodélica e ultra-rebuscada, envolta por um batalhão de metais, frequências de radio e beats orientais pesadões regidas por um GLK que se portava como um maestro-messias-apocalíptico. Performance de alto nível e que tende a ficar ainda mais intensa, uma vez que foi apenas a 2ª vez que eles se apresentavam juntos.
Love is The Message
Mais uns vai e vens pelo território, comilanças etc até que o bom tempo voltasse. Retornamos ao Genosys no Block 9 onde Andy Butler do Hercules & Love Affair fazia um set para poucos num espaço totalmente enlameado, só que dessa vez com o sistema de som no grau. House music com pitadas orientais e latinas, versões raras de seu principal projeto, flertes com a bass music e com o techno cabeçudo.
Para coroar o belo pôr-do-sol desse primeiro dia, reservamos empolgação e energia para o show do Caribou. Apresentação mágica, hora intimista e muita vezes catártica (incluindo lasers anti-bad vibe), que comprovou para nós que o último disco faz ainda mais sentido quando executado ao vivo e embolado com faixas antigas e amadas: uma ode matemática ao amor e seus pequenos detalhes que mergulha a turminha clubber em referências calorosas, expansivas e bem diagramadas, com direito a “Sun” puxando um final glorioso. Foi viver para ver!
https://www.youtube.com/watch?v=Fo_fQ45wtCI
Ainda deu tempo de subir a colina para curtir de longe o show poderoso que James XX fazia no The Park. Grave vibrando de maneira absurda em sequências bate-assopra que faz todo sentido quando se tem uma galera ensandecida e cheia de hormônios a sua frente. Som para muita gente. Só que bom.
https://www.youtube.com/watch?v=42jqh0ig-mU
Estratégia foi ir descansar para levantar de madrugada novamente para acompanhar set acid house de Richard Norris, a outra metade do Beyond The Wizards Sleeve, que fiquei sabendo apenas depois que já tinha retornado para casa que eles se apresentaram nesse mesmo dia, só que mais cedo… Duas horas raver fritação com direito a robôs fumando e roçando no pole-dance.
Groove is on the heart
Pelo que me lembro, não há nenhuma arena 24h no Glastonbury, sendo que o caminho natural para você que ainda quer curtir as 07h da manhã é o Maceo’s, um barzinho localizado dentro do Block 9 destinado apenas para quem esta como staff no Festival. Esse é o local que nunca para, com vários DJs importantes que se apresentam na programação oficial tocando dentro de uma carreta de caminhão numa pista intimista e despretensiosa. Foi aí que curtimos o set Horse Meat Disco de nosso padrinho Luke Howard e de seu parceiro James Hillard, que colocaram um público super aceso para derreter num groove-slow-bpm delicioso.
De lá fomos para o Healing Field, onde tivemos oportunidade de receber uma relaxante massagem shiatsu (você contribui quanto quiser, mas vale sempre perguntar antes de começar qual o valor sugerido) e de fazer aula de kundalini yoga para reativar nossas energias. Com os shakras alimentados, mais uma vez o palco era o West Holts, onde assistimos um ótimo show do talentoso Sinkane, rapaz que lançou em 2014 pela DFA um álbum que faz sempre nossas manhãs e encontros familiares mais fáceis. Afro-pop, soul, reggae e um início folk meio árabe garantiram uma apresentação calorosa e contagiante, que sinaliza um belo futuro pela frente e que funcionaria super bem em solos brasileiros.
Clima não tão aberto como de quinta mas com certeza melhor que o de sexta, só que com tudo muito lotado fizeram do sábado 28/07 um dia visivelmente mais grogue. Tivemos essa certeza ao realizar a infeliz escolha de curtir o maestro Burt Bacharach no Pyramid Stage, local definitivamente que não foi para o nosso bico. O vovô fazia um show para umas 60 mil pessoas, volume baixo, muito falatório, sol escaldante, intervalos gigantescos entre as músicas… Sono bateu violentamente e resolvemos nos recolher para garantir as pernas para o que viria mais a frente.
Quem comandaria o pôr-do-sol dessa vez, de novo no West Holts, era Todd Terje & The Olsens. Fui meio desconfiado pois achava difícil que ele repetisse ao vivo de maneira fiel músicas que arrasaram as pistas nos últimos 3 anos. E quebrei meu queixo. Acompanhado de um baterista, um guitarrista que também tocava instrumentos de sopro e de mais um percussionista, fizeram um show com ótima progressão e pressão ideal, intercalando de maneira competente faixas mais lentas e voltadas para jam sessions com hits do naipe de Delorean Dynamite até empurrar o público para um gozo coletivo suave e colorido com a dobradinha Ragysh e Inspector Norse.
https://www.youtube.com/watch?v=Lxt9P5j8Lrk
A noite chegou e com ela o combo espacial George Clinton, Parliament, Funkadelic & The Family Stone aterrissou no evento. Primeiro Sly e sua família fizeram um show funkadão, que mostrou grande resposta de público, mas que para gente foi meio cansativo e pouco inspirado, jogando sempre que possível a responsa para galera. Já o tio Clinton e seus comparsas do Funkadelic e Parliament, que entraram logo em seguida assumindo a nave Mothership, a coisa no início se mostrou mais solta e moderna, até que do meio para frente ao invés de buscar por uma conexão mais sensorial com os presentes botaram o público para bater palmas e entoar gritinhos fáceis e assim adentrar num território seguro mas não tão poderoso.
Welcome (back?) to the machine
Precisávamos ativar nossa serotonina e sabíamos que se jogar nas pistas seria o melhor remédio para isso. Fomos lá bater cartão no Block 9, onde um dos nomes mais comentados nos bastidores, o Awesome Tapes From Africa fazia um set com fitas cassetes no NYC Downlow. Incrível a energia do lugar, que realimentou nossas baterias e nos fez pular com o sound system mais poderoso e cuidadosamente calibrado que já tivemos oportunidade de experimentar num espaço fechado. A galera subia nas paredes com o house exótico, simples e marginal que rolava, enquanto os dançarinos animavam a plateia num desfile muito bem humorado de beldades soft porn. Vale observar novamente: incrível a pressão que saía daquelas fitinhas!
Agora de volta ao Genosys, tivemos oportunidade de conferir outro nome também muito bem falado nas rodas internas: Prosumer, ex-residente do Berghain levou público para um passeio em seu deep house classudo e cerebral que iria abrir alas para o Techno nada linear de nosso ídolo Four Tet. Com o dia nublado já amanhecendo, deu para dançar surfando nas batidas espaciais e energéticas de outra lenda local, o carismático Felix Dickinson. A cabeça se mostrava baqueada depois de tanta martelada e resolvi buscar oxigênio no Jag’z Acid Lounge que ficava logo em frente no stage Shangri-La, onde uns três membros do Primal Scream faziam um set fodaço de northern soul para um público bem jovem e descabelado.
Frito e exausto, literalmente fui jogado da cama pelo choro de um bebê que estava acampado em uma tenda vizinha… Não tendo como combater o infortúnio, direção mais uma vez foi o Maceo’s, onde o responsável pela plataforma web The Downlow Radio fazia um set para os sobreviventes da noite anterior. A estratégia foi balançar um pouquinho para puxar o sol e depois sair para comer e realinhar a alma no Healing Field, onde todos comentavam sobre a palestra do Dalai Lama. A massagem dessa vez foi meia bomba e valeu mesmo foi pela dica que a moça deu sobre um restaurante meio escondido da turma da permacultura. Aqueles tesouros que você descobre só no último dia, sabe? Ainda na ânsia por um alinhamento da coluna, investi um tempo no Tai Chi Chuan que acontecia ali perto.
Final Mission
O último dia nascia com sabor esquisito e nossa programação começou só as 17h, com uma apresentação do Django Django no John Peel Stage, lá do outro lado da cidade. Mais um show muito bem calibrado de uma atração com álbum recém lançado que teria tudo para fazer um belo estrago nos festivais aqui do Brasil. Rock moderninho com alma Mama and The Papa’s e coração Beach Boys. Representam uma continuação inteligente e natural da atração que vimos em seguida: os tiozinhos do The Zombies se reunindo pela primeira vez em mais de 40 anos para tocar no Avalon Stage seu disco relíquia “Odyssey and Oracle”. Ok, na próxima vez ao escolher entre uma atração que vai subir no palco com 70 anos de idade e banda indie queridinha do momento (Alt-J), talvez a gente fique com a segunda…
https://www.youtube.com/watch?v=5TflTaI_wQY
Seguimos para o Silver Hayes para conferir pela segunda vez no festival uma apresentação do Four Tet. Agora numa área coberta (Wow!), Kieran Hebden utilizou 3 decks para contar sua história, fazendo uma síntese de todo teor espacial e transcendental que sustentam um frenesi sagrado por trás do Glastonbury. Reverências à África e as filosofias orientais demonstram o poder cósmico e ancestral que potencializam experiências como aquela, dando a letra de que há um jogo muito elevado por trás de um encontro que mistura 180 mil roqueiros e ravers, Stephen Hawking e até o Dalai Lama para coabitar uma sociedade alternativa durante pouco menos de uma semana nas terras que um dia foram palco de Camelot.
Neurônios famintos e metabolismo a pleno vapor nos levaram para o show mais esperado do Festival: o duo Chemical Brothers iniciava no palco vizinho (Other Stage) performance do seu oitavo álbum de estúdio.
É fantástica a sensação de saber que naquele momento não haveria local diferente no universo para estarmos. Umas 50 mil pessoas ansiosas para saber quem seria eleito na roleta russa que rolava no telão para ser enviado como tripulante dessa nave anabolizada em direção a 5ª dimensão. Os beats ácidos e acelerados se intercalam com o mood lisérgico, direcionando o público para experiência de outra galáxia. Sim, é possível atravessar (ou sobreviver?) buracos negros e atingir paisagens surreais e pouco exploradas quando seu combustível é o amor e a boa música!
https://www.youtube.com/watch?v=SRyScKZTT5E
Após quase 2h deste show inebriante, ainda sentindo os efeitos de uma navegação na ausência da gravidade, reunimos os cacos para aproveitar cada minuto que ainda faltava antes de desarmarem esta plataforma nuclear. Deu tempo para se perder por apresentações alienígenas que fluíam no Green Fields até a bússola apontar para o show do Gypsdelica que atordoava o navio do Green Peace no The Engine Room, onde rolou o único bis que tivemos oportunidade de presenciar durante todo Glastonbury.
O gran finale não poderia ser em lugar diferente: nosso padrinho Luke Howard era responsável pelo último set no NYC Downlow (Block 9), botando um ponto final classudo e recheado de ótimas vibrações nessa edição que o próprio Michael Eavis apontou como a melhor de todos os tempos!
O nascer do sol mágico recebido por uma extensa salva de palmas dos sobreviventes transloucados que se concentravam no Stone Circle também sinalizava no horizonte nosso retorno eminente de volta para o planeta terra, junto com sentimento sólido e inesquecível de gratidão por ter feito parte desta tripulação que mantem viva a mítica envolta das Brumas de Avalon.
– Fotos: Julia Hormann