Review Rainbow Serpent Festival: um lugar cuja regra é se permitir


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Por: BLANCAh, artista catarinense, ganhadora do prêmio Produtora Revelação no BRMC 2016 e única artista mulher brasileira a compor o lineup internacional do Market Stage no Rainbow Serpent Festival.

 

Quando minha booker, Sally, me ligou empolgada com a notícia de que eu tocaria no Rainbow Serpent Festival, não pude mensurar o tamanho da felicidade dela. Simplesmente porque eu não sabia do que se tratava. Fiquei feliz, agradeci, anotei na agenda… Seria minha primeira ida à Austrália, me ative à viagem, e não ao festival em si.

Desembarquei em Melbourne depois de uma viagem extremamente exaustiva, num calor de 37 graus. Na manhã seguinte, o motorista da van que nos levaria ao festival estava pontualmente no saguão do hotel. Nos apresentamos e aguardamos pelos demais artistas. Me sentei na janela na expectativa de ver cangurus no trajeto de 2 horas até a cidade de Lexton, pois me disseram que era corriqueiro eles atravessarem o caminho, mas deduzi que o calor excessivo tenha sido o culpado por eles não aparecerem.

Chegamos por volta das 15h no espaço do festival. O trajeto já estava colorido por bandeirinhas e lembro que meu primeiro espanto foi ver o tamanho da área de camping e a quantidade surreal de barracas já instaladas. A grande maioria das pessoas já havia chegado um dia antes para se instalarem e garantirem seus espaços.

Foto: arquivo BLANCAh

Meu segundo espanto foi a poeira absurda que pairava no ar. Naquele momento percebi que teria que desapegar de algumas neuras com limpeza e abandonar algumas manias. Quando descobri que a água do chuveiro coletivo era quentinha, me senti em casa.

Já na base onde recepcionavam os artistas tivemos uma amigável acolhida. Uma parte considerável das pessoas que estavam trabalhando no festival eram voluntárias, e todas, absolutamente todas nos atendiam sorrindo, desejando bom dia, resolvendo problemas com muita calma, coisas que, em geral, não vemos acontecer com tanta frequência entre organizadores e promotores de festas que estão sob pressão.

Cada artista recebeu um kit de sobrevivência com protetor solar, loção inseticida, uma pequena lanterna, barrinha de cereal e crachá de identificação. No camping dos artistas seríamos todos vizinhos, eu, Nick Warren, Patrice Baumel, Matador, e tantos outros que acabei conhecendo por lá, cada um ocupando uma cabine ou um trailer. Depois de instalada, deitei pra esperar o calor diminuir até o fim de tarde chegar, passei meu protetor solar e decidi sair pra explorar.

Descobrindo o Rainbow Serpent Festival

Era notável o fato de todas as pessoas estarem fora de seus contextos habituais. Todos estavam, de certo modo, fantasiados ou, no mínimo, customizados com roupas e acessórios pouco convencionais. Entendi que o clima era de carnaval, onde a regra é se permitir.

Ao sair do camping dos artistas meu primeiro contato com o festival foi com um espaço chamado “The Village”, que funciona como um lugar de atividades além das pistas de dança, como Yoga, oficinas e palestras sobre cinema, cultura aborígene, arte visionária, educação em permacultura, massagem e cura, atividades infantis e muito mais. Aqui vale ressaltar que haviam muitas crianças com seus pais no festival, o que me deixou surpresa e feliz.

Foto: arquivo BLANCAh

Coincidentemente, no momento em que cheguei estava rolando uma palestra sobre a presença feminina na indústria artística intitulada “Women’s Way in Music, Art, Industry & Culture Featuring”. Pude perceber que mesmo lá do outro lado do mundo essa questão e suas demandas são muito parecidas com as nossas.

Logo à frente da tenda de palestras ficava o “Chill Stage”, onde passei a maior parte do festival. Dedicado às sonoridades mais brandas e experimentais, o “low bpm” era o carro chefe e pude assistir a muitas live performances super interessantes.

A partir do Chill Stage você poderia optar por seguir pela via gastronômica ou pela via do mercado para chegar aos próximos palcos. Na via gastronômica- podíamos encontrar uma série de estabelecimentos, desde casas de chá até comida indiana, coreana, mexicana, vegana, muitas opções vegetarianas, hambúrgueres gourmet, pizza, enfim, comida para todos os gostos.

O detalhe era que toda comida e bebida eram servidos em utensílios reutilizáveis. Nada descartável. Assim, tínhamos que retornar aos pontos de coleta tudo o que utilizávamos para comer, de copos à talheres e pratos. Tudo era devidamente higienizado e reutilizado.

Percebi que a preocupação com o meio ambiente era latente e todos eram incentivados a prestar muita atenção nisso. Inclusive, haviam horários especiais de limpeza dos stages. Quando a última atração terminava, em seguida tocava o “Rap da limpeza” e todo o público começava a dançar juntando o lixo que encontrava. Era muito divertido. Ao final de cada turno as pistas estavam limpas, e tudo feito pelo próprio público. Ou seja, com uma campanha direta e bem-humorada, a organização do festival chamou a atenção para esses detalhes e alcançou seus objetivos.

Foto: divulgação Rainbow Serpent Festival

O segundo stage que fui conhecer se chamava “Playground”. Era uma tenda de circo onde a organização propunha uma espécie de “Caos Mágico”. Ali apresentavam-se bandas de diferentes gêneros, mas que tinham o ato artístico-performático como um ponto em comum. Algumas tinham ares circenses, outras misturavam jazz com sons folclóricos, groove cigano, cumbia, assisti a algumas apresentações burlescas. De fato, era um caos muito criativo.

O público que frequentava essa tenda era bem peculiar. Tive a impressão de serem os mais dispostos à “jogação”. Pareciam fazer parte do espetáculo, dançavam coreografias inventadas na hora, abraçavam-se, atiravam-se ao chão… Era bem divertido assistir a tudo aquilo e absorver um pouco daquele caos. Uma das bandas que mais gostei de assistir foi a “My Baby” comandada por uma mocinha bem atrevida.

Foto: Edward Richards

Enfim fui conhecer o “Market Stage”, o palco principal e o único “non stop” do evento (e onde eu deveria me apresentar no último dia do festival). Deu um frio na barriga. O som batia potente, macio e redondo. O palco era lindo e receberia desde artistas locais como Smilk, até já consagrados como Oliver Koletzk, Secret Cinema & Egbert Live, Super Flu, Nakadia, Matador, Nick Warren, D-Nox, Patrice Baumel, dentre tantos outros.

A maioria das pessoas se concentrava nesse stage e o que mais se via eram os cajados de identificação de grupos. Algo super comum por lá, mas que eu não conhecia. Com o intuito de não se perderem, muitos amigos que foram em grupos criavam cajados enfeitados com luzes, fitas coloridas, tecidos e lantejoulas, e cartazes na ponta com o nome dos grupos ou mensagens bem-humoradas. À noite, esses cajados eram um espetáculo à parte no meio da multidão.

O “Main Stage” era o coração conceitual do festival. Nele aconteceram algumas cerimônias aborígenes seguidas por DJs de Trance. Pude assistir a apresentação de um artista australiano chamado Ganga Giri, que com a sua banda formada por aborígenes mistura sons ancestrais do “didgeridoo” com beats eletrônicos. Fiquei impressionada com a energia da banda. Em seguida o Trance tomou conta. Christopher Lawrence, Tristan, e o projeto da brasileira ThaTha conhecida como Altruism passaram por esse stage.

Foto: Edward Richards

O último palco que visitei foi o “Sunset”, e confesso que não me ative muito a ele, mas tive a impressão de ele ser dedicado ao breakbeat.

Um pouquinho de Burning Man

O caminho entre um stage e outro era floreado com lindas instalações de arte, algumas vindas do Burning Man. Havia ainda uma galeria onde artistas executavam pinturas e desenhos ao ar livre e expunham em tempo real.

Passei quatro dias imersa nesse universo, vivendo e respirando arte, sem sinal de telefone, muito menos de internet. Também não vi ninguém com celular na mão. Me sentia até constrangida de tirar o meu do bolso para fotografar. Sem selfie, sem ostentação, sem like, sem os excessos das redes sociais virtuais, parecíamos todos concentrados em viver a experiência real, mesmo que utópica e catártica.

Foto: arquivo BLANCAh

O que mais chamou minha atenção foi o senso de coletividade e de comunidade. A produção do evento, em todos os seus meios de comunicação com o público, o tratava como um corpo comunitário onde todos deveriam cuidar de todos.

Sensação de liberdade, mas também de segurança

Nos 10 pilares de segurança divulgados pelo festival sempre consta o incentivo ao bem-estar pessoal e do próximo. O oitavo pilar, por exemplo, é uma aula de educação sexual e, em grande parte, evita que predadores sexuais transitem livremente pelo festival.

Foto: divulgação Rainbow Serpent Festival

Havia também um cuidado com o uso de drogas. O festival em momento algum incentiva ou permite o uso de substâncias ilegais. Bebidas alcoólicas, por exemplo, não são vendidas dentro do festival. Você já imaginou isso no Brasil? Quase impossível né? Mas lá, o comum é o festival não oferecer de modo algum a possibilidade de os participantes comprarem álcool dentro do evento, o que diminui consideravelmente as chances de você ver os problemas resultantes do excesso de álcool.

Apesar de não incentivar o uso de nenhuma droga, é sabido da impossibilidade de evitar que elas circulem no festival, e por isso existe um lugar especialmente dedicado a educação do usuário priorizando a política de redução de danos. Como a polícia na Austrália é muito rígida no tocante às drogas, também é possível fazer um teste antes de ir embora do festival para saber se o motorista está apto a dirigir ou não, evitando assim, acidentes e possíveis problemas com os policiais. Tudo isso promovido pelo próprio evento para garantir ao máximo a segurança da comunidade.

Este espírito de senso coletivo, respeito e de cuidado com o outro foi o que de melhor eu trouxe dessa experiência. O respeito às diferenças e a liberdade de expressão que pairava no ar são valores muito mais reais em festivais como este do que o que estamos acostumados a ver pelos lados de cá. E acho que esse é o melhor exemplo que deveríamos começar a importar, já que olhamos tanto para “fora”.

Já sabemos montar estruturas, já sabemos criar lineups, será que um dia saberemos viver sem camarotes e áreas vips? Sem ostentação e sem selfies? Sem reparar na roupa ou na idade dos outros na pista? Será que um dia recolheremos o nosso próprio lixo ou manteremos o banheiro limpo para o próximo? Será que um dia, nós mulheres poderemos andar livremente na pista sem que nos toquem o corpo, nos puxem os cabelos ou nos agarrem pela cintura sem consentimento?

Enfim chegou a segunda-feira. Meu set começaria às dez da manhã. Quando chegou a minha hora, senti o frio da barriga habitual, mas um pouco mais forte. Sabia que aquele era um momento especial. Montei um set com minhas músicas favoritas. Algumas bem fresquinhas, outras já antigas. Toquei pra mim. Toquei pra eles. No fim éramos nós, ouvindo, dançando e sorrindo….. Eles de lá, eu de cá. Na metade do meu set Nick Warren apareceu, me deu um abraço e elogiou meu set, antes de me pedir uma foto.

Foto: arquivo BLANCAh

Segui tocando mais feliz ainda, até que aparece nas minhas costas meu querido D-Nox, sempre sorrindo, sempre naquela vibe gostosa que só ele tem. Aliás foi ele quem salvou meus registros pois eu não tinha feito nenhuma foto até então. Entreguei meu celular e ele caprichou nas fotos pra mim.

Entreguei a pista para o Nick com aquela sensação gostosa de dever cumprido, e depois foi só assistir da pista o baile desses monstros que tanto admiro e que tocaram em sequência… Nick Warren, D-Nox (que além de tudo tocou uma música minha inédita, o que me fez sair da pista correndo pra ir lá no palco pular e abraçar ele até sufocar) e para encerrar a “Crazy Monday”, Patrice Baumel.

Só tenho uma coisa a dizer sobre tudo isso que vivi: foi lindo!!!!

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